As garotas do time de basquete bem que estranharam uma câmera de vídeo presa ao teto, num canto do vestiário feminino. Ainda assim, elas trocaram de roupa à vontade. Até que uma das moças comentou sobre a câmera com seu treinador, que falou com o diretor da escola de ensino médio Livingstone, no Estado americano de Tennessee. Logo os pais foram avisados e o caso terminou na Justiça. Descobriu-se mais tarde que as imagens das moças de calcinha e sutiã ficaram por quase seis meses nos computadores da escola e foram vistas por vários internautas.

Numa decisão histórica, na semana passada o Tribunal Superior do Trabalho de Minas Gerais decidiu, por unanimidade, condenar a empresa Peixoto Comércio a pagar uma indenização de R$ 673 a um de seus funcionários, valor equivalente ao seu salário de um mês. O motivo foi a instalação de câmeras de filmagem nos banheiros masculinos.

Casos como esses não são raros. Uma simples pesquisa no endereço de buscas Google demonstra o grau de vulnerabilidade em tempos de tecnologia digital. Pode-se acessar o conteúdo de pelo menos dez mil câmeras de vídeo instaladas em quartos, salas, lavanderias, farmácias e cruzamentos. Assim como as páginas da internet, cada câmera tem um endereço eletrônico na rede e, a não ser que esteja protegida por programas de segurança, é possível rastreá-las. Com a proliferação das câmeras de vigilância e das webcams, ligadas aos computadores, a falta de privacidade se tornou uma preocupação necessária.

Na prática, qualquer um pode fuçar a vida alheia. “Se as pessoas não perceberem que sua imagem está na internet, como elas podem brigar por privacidade?”, questiona Jennifer Stisa Granick, diretora do Centro de Internet e Sociedade da Escola de Direito de Stanford, nos EUA. A realidade é que as lentes indiscretas não apontam só para chiques e famosos. Estão em toda parte. Em elevadores, portarias de prédios, bancos, ruas, supermercados. É como se vivêssemos num imenso reality show, como o Big Brother, em que a intimidade fica 24 horas acessível a milhões de pessoas.

Calcula-se que num único dia um cidadão pode ser fotografado ou filmado no mínimo 20 vezes. Só para se ter idéia, nas 52 estações de metrô de São Paulo, a maior rede metroviária do País, são 600 câmeras instaladas e, em breve, outras 300 vão vigiar os passos dos usuários. O que nos difere dos confinados do Big Brother da tevê e da sociedade vigiada pelo chamado Grande Irmão e retratada no livro 1984, do inglês George Orwell, é que no Brasil ainda não existe um sistema que agrupe todas essas imagens e informações. “No dia em que estiver tudo interligado, será possível saber todos os passos de qualquer pessoa”, prevê Ricardo Chilelli, da consultoria de segurança RCI First.

Difícil projetar com exatidão a quantidade de câmeras instaladas nas vias ou locais públicos do País. “Tanta tecnologia joga a privacidade no lixo”, diz Chilelli. Só sua empresa instalou 15 mil câmeras perto de portas blindadas no Estado de São Paulo.

Nem as crianças estão livres dos olhos vigilantes. Se antes uma babá eletrônica resolvia o problema dos pais ansiosos, hoje mãe tranquila é aquela que pode vigiar seus filhos quando quiser. Muitas escolas possuem câmeras para que os pais vejam os filhos pela internet. O outro lado da moeda é a possibilidade de uma câmera flagrar absurdos, como a babá que espanca um bebê de colo.

Sistemas de rastreamento existiam antes mesmo dos serviços de localização via satélite. Os celulares com tecnologia digital há muito podem ser rastreados pelas empresas de telefonia. Através do sinal enviado pelo aparelho às antenas de transmissão, é possível traçar um mapa do trajeto do usuário. O mesmo acontece com os cartões de crédito. Informações como renda, endereço e preferências íntimas do cliente, como os motéis que ele frequenta e os produtos que ele compra, passam a fazer parte do arquivo da companhia. E não há garantia de que os dados estarão a salvo da investida dos piratas digitais.

A falta de privacidade se agravou com a internet e seus serviços. Casos de hackers que roubam ou clonam informações de bancos são cada vez mais corriqueiros. Some-se a isso os blogs e fotoblogs, nos quais os internautas colocam fotos e relatos sem se dar conta do risco que correm. “Há uma total falta de conhecimento sobre o que é privacidade. Todo mundo tem acesso à rede, mas ninguém sabe exatamente o que fazer com as informações”,
diz o psicólogo Erick Itackura, pesquisador da Pontifícia Universidade
Católica (PUC) de São Paulo.

Foi o que aconteceu com o amigo de um dos filhos do presidente Lula, que colo-
cou em seu blog fotos e comentários sobre sua estadia na Granja do Torto e seu convívio com a família presidencial. Ou do garoto americano Gary Brolsma, que filmou a si mesmo dançando e cantando uma música romena e foi visto por dois milhões de internautas.

Há tempos as pessoas têm pouca ou nenhuma privacidade no trabalho ou nas escolas. Num caso emblemático, a modelo Elizabeth Jagger, filha mais velha do roqueiro Mick Jagger, dos Rolling Stones, ganhou na Justiça o direito de proteger sua intimidade. A modelo de 21 anos, cujo rosto ilustra a marca de cosméticos Lancôme, foi flagrada por uma câmera instalada na casa noturna Kabarets Prophecy, em Londres, enquanto fazia sexo com seu namorado, Calun Best. As imagens do casal estamparam a primeira página do semanário News of the World. Liz recorreu aos tribunais para evitar a divulgação das fotos, sobretudo na internet.

Apesar das evidências, as pessoas parecem dispostas a perder sua privacidade em nome da segurança. Casos como o que ocorreu em Sobral, no Ceará, onde um juiz matou com um tiro na nuca o segurança de um supermercado, incentivam a sociedade a aprovar essa invasão. Se não fosse a câmera que registrou toda a cena, seria a palavra de um caixa de supermercado contra a de um juiz.