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As autoridades brasileiras nunca conseguiram colocar um fim na mais antiga das contravenções federais em jogos de azar, o jogo do bicho, mas o tempo tratou de modificá-la. Hoje, os resultados diários das apostas não estão mais no poste ou em pequenos papeizinhos carimbados e o que estava escrito deu lugar ao que está impresso. De forma inusitada, o jeito informatizado de interagir com o mundo chegou onde a lei não conseguiu se fazer valer. Os palpites de quem aposta em um dos 25 animais do bicho são agora digitados em máquinas feitas originalmente para debitar ou creditar cartões de banco, as tradicionais maquininhas de cartão de crédito espalhadas mundo afora. Das máquinas adulteradas, as informações vão direto para uma central. Um comprovante é emitido com o horário da aposta e o número do terminal. Em quase todas as bancas, elas imprimem, junto com a aposta, uma mensagem de “boa sorte” e o nome do bicheiro a que pertencem. O sistema, que tem a vantagem de dispensar o motoqueiro que recolhe o dinheiro e os bilhetes nas bancas, além de permitir que o horário das apostas seja ampliado, vai aos poucos tomando conta dos pontos paulistas.

Criado em 1892 (leia quadro), o jogo do bicho sofre hoje a concorrência de meios mais imediatos de ganhar dinheiro com jogos de azar, como os caça-níqueis e bingos, ilegais em solo brasileiro, e de raspadinhas e loterias, os primos lícitos. Mas o bicho persiste e se moderniza. Como antes, ainda é encontrado em toda a cidade, em bairros pobres ou ricos, e quase sempre dentro de pequenas portas ou atrás de discretos balcões de estabelecimentos comerciais formais. “No meu estabelecimento, faço uma média de 100 apostas por dia. Quartas e sábados, quando corre a federal, é o dobro”, conta J., 62 anos, um apontador do jogo do bicho do bairro paulistano da Mooca, em São Paulo. Seu ponto é dentro de uma lanchonete de sua propriedade. J., muito conhecido na região, faz aposta desde a década de 1970 e nos anos 1980 já usava computadores e impressoras para registrar os jogos. Hoje movimenta cerca de R$ 8 mil em dias comuns, chegando a movimentar o dobro nos dias do sorteio das federais. “Depois do papel, vieram os computadores. O banqueiro trouxe um computador e uma impressora para cá para testar a programação do jogo. Mas isso era caro e ficou obsoleto. Uso a máquina de cartão há um ano”, conta. J. não sabe como as máquinas são adquiridas, pois, como antes acontecia com os computadores, elas são trazidas pelos banqueiros. “Eles isolam a gente. O que acontece lá fora a gente não fica sabendo. Só sei que eles fazem um chip especial, como se fosse um programa de computador, e inserem na maquininha. Ela chega pronta”, garante.

Movimento semelhante ao de J. tem o ponto da carioca C., radicada em São Paulo há 12 anos. Desde 2008, ela faz apostas em um bairro de classe média alta da região oeste da capital por meio de máquinas. Lá, ela movimenta R$ 3 mil ao dia e diz não temer a pena para o crime de exploração de jogo de azar, que vai de seis meses a um ano e meio de prisão. “Acho que a polícia tem mais com o que se preocupar, né?”.

A apontadora carioca parece ter razão. Após inúmeras delegacias terem declarado desconhecimento sobre este fato, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo também afirmou desconhecer o uso das máquinas no jogo do bicho. Um agente da polícia civil de São Paulo disse que, na realidade, não interessa muito à instituição a apreensão das máquinas ou o jogo em si. “O jogo do bicho já não movimenta um montante de dinheiro que valha a pena uma investigação. Existem outras formas muito mais rápidas de se ganhar dinheiro por meio de apostas, como no caça-níquel”, garante o agente. Ele disse, ainda, que o hábito de jogar no bicho está se restringindo a poucos e saudosistas senhores “que não se adaptaram às novas formas de aposta”.

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Diante da argumentação da polícia, das divagações dos apontadores e de um histórico de fidelidade ao jogo do bicho, uma das explicações possíveis para a longevidade da prática na sociedade brasileira, pode ser a de que, entre os 25 animais passíveis de serem sortea­dos, não exista a zebra.

Do zoo para a ilegalidade

O jogo do bicho começou a ser praticado no Brasil meses após a inauguração do primeiro zoológico do Rio de Janeiro, no momento em que o País passava do período imperial para o começo da República. A ideia da construção do jardim foi de João Baptista de Vianna Drummond, o Barão de Drummond. Apesar de ter recebido regalias do governo, como a isenção de impostos por quase três décadas e a subvenção estatal, o negócio não atraiu tanta gente. Para melhorar a situação, Drummond decidiu criar uma loteria tendo os animais do zoo como motivo. Assim, para chamar público, o bilhete de entrada passou a vir com o carimbo de um dos 25 bichos do parque. Ao final do dia, um animal era sorteado e os donos dos ingressos contemplados com o animal correspondente ganhavam 20 vezes o valor do ingresso. Não tardou para que o sucesso do jogo ultrapassasse os limites do jardim do barão. O jogo foi, então, disseminado para a cidade e depois para todo o País com o apoio de pequenos comerciantes e vendedores ambulantes. Apenas em 1941 jogar no bicho se tornou ilegal.
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