Quando o piloto brasileiro entregou a posição para Alonso, o consultor ficou arrasado. “Sou um palhaço, fui enganado”, pensou. Para o pequeno Luís Felipe, porém, tudo ainda era diversão. “Sei que o Massa deixou o Alonso passar. Se ele tivesse desobedecido o chefe, poderia perder o lugar na Ferrari.” Seu pai, dizendo-se indignado e com vontade de nunca mais torcer pelo brasileiro, irá explicar melhor o episódio ao filho. Argumentará que no esporte, assim como na vida, um sonho não deve ser alcançado a qualquer preço. Massa sonha em ser campeão do mundo, mas não deveria compactuar com o vale-tudo da F-1 só para se manter em uma equipe de ponta e seguir engordando a conta bancária em R$ 23 milhões por temporada. Socialmente, a ideia de que se deve fazer tudo por dinheiro – mesmo o ilegal ou o imoral – foi capaz de destruir civilizações ao longo da história, como aconteceu na Roma Antiga. Referências e lideranças são importantes para a sociedade avançar. “O instrumento mais importante da vida coletiva é o exemplo”, diz o sociólogo Murad. “Os heróis, estejam eles nos campos esportivo, político ou cultural, são símbolos para as pessoas.” Quando dão mau exemplo, o povo vê destruídas suas referências coletivas. No outro extremo, podem mudar a história de uma nação, como fez Nelson Mandela na África do Sul.

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Massa irá a julgamento, com a Ferrari, no Conselho Mundial da Federação Internacional de Automobilismo, em setembro. Fazer jogo de equipe para beneficiar um de seus pilotos é vetado pelo regulamento. “É inaceitável qualquer armação como essa. Sou amigo e torcedor do Felipe e trabalhei na Ferrari. Mas, pensando na F-1, no esporte, tanto o piloto quanto a equipe têm de ser punidos”, diz Luciano Burti, que disputou a modalidade entre 2000 e 2001.

Ferrari sem pudores
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TIME DA ARMAÇÃO
Da esq. para a dir., Luca di Montezemolo e Stefano Domenicali,
da Ferrari, e Jean Todt, da FIA: juntos a favor da trapaça

Não é segredo que a maioria das escuderias de Fórmula 1 já alterou as posições de seus pilotos para favorecer um preferido. Mas a Ferrari espanta pela desfaçatez com que age ao instruí-los durante a corrida. “Outras equipes, como a McLaren, usam mensagens cifradas como ‘poupem combustível’”, diz Amir Nasr, dono de uma equipe de stock car e há mais de 30 anos no automobilismo. A escuderia italiana nem tenta esconder suas armações. “A Ferrari não é digna da paixão que ela desperta”, sentencia Reginaldo Leme, comentarista de F-1 há 38 anos. “Se Enzo Ferrari (criador da marca) estivesse vivo, ele não permitiria que isso acontecesse.” Entre 2000 e 2005 viu-se o auge da manipulação. A mando do então diretor de equipe, Jean Todt, Rubens Barrichello cedeu o topo do pódio a Michael Schumacher em diversas ocasiões, sendo a do GP da Áustria, em 2002, a mais escandalosa. Aquela marmelada forçou a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) a criar uma regra, que não surte efeito, para proibir a manipulação. Mas esse tipo de comportamento antiesportivo tem poucas chances de ser punido. Afinal, quem preside a FIA é o ex-ferrarista Jean Todt, que consagrou a intervenção da equipe no destino dos pilotos. Portanto, esperar rigor na regulação do esporte e na aplicação da regra, principalmente quando os envolvidos são da Ferrari, é ilusão.

 

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A opinião pública, porém, não aguardou o veredicto oficial e vem condenando Massa, a Ferrari e a F-1. A maior comunidade dedicada ao piloto no site de relacionamentos Orkut, a “Felipe Massa do Brasil”, estava em ebulição na semana passada. O tópico “Deixando a Comunidade” era um dos mais comentados, com 351 respostas, a maioria contra o piloto brasileiro. Outros 30 tópicos discutiam o problema da corrida com títulos como “Continuarei torcendo, SIM”, “Mercenário ou vítima?” e “Massa e a marmelada ferrarista”. No total, das 16 maiores comunidades do piloto, 11 discutiam ativamente os acontecimentos de Hockenheim em tópicos acalorados.

A F-1 começou a perder as características que encantaram gerações nos anos 1990 quando o salto tecnológico tornou o piloto quase um coadjuvante no cockpit. “Os carros de corrida são equipamentos e não mais automóveis. No volante, há mais de 100 botões. O condutor virou um operador de máquina”, reclama Bird Clemente, 72 anos, primeiro brasileiro a guiar, profissionalmente, um carro de corrida. No passado, quando esse esporte dependia muito mais do talento do piloto para acertar um carro, era impensável que Nelson Piquet cedesse uma posição na corrida para o inglês Nigel Mansell só porque o adversário desfrutava de vantagens técnicas por ter a mesma nacionalidade (a inglesa) da Williams, equipe pela qual os dois corriam, nos anos 1980.

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EX-FÃ
“Me senti traído”, diz o estudante Raphael Correa, que não irá torcer mais por Massa

“Você não imagina o palavrão que o Piquet soltaria para o chefe se ele o mandasse deixar o Mansell ultrapassá-lo”, diz Reginaldo Leme. “Ídolos como Piquet e Senna não têm mais espaço na F1. Os pilotos são proibidos até mesmo de dizer o que pensam”, conta Enrique Bernoldi, que correu na modalidade entre 2001 e 2002. Segundo ele, em seu contrato com a Arrows havia uma cláusula que o obrigava a cumprir os mandos e os desmandos da equipe. Em duas provas, conta Bernoldi, ele foi obrigado a deixar seu companheiro de escuderia ultrapassá-lo após receber a ordem do via rádio. “Em 2001, tive de abrir para o (Jos) ­Verstappen na quinta volta de Mônaco. Em 2002, dei a posição para o (Heinz-Haral) Frentzen na Alemanha”, diz ele, que disputa atualmente o mundial de Grand Turismo (GT1).

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Pilotos que abrem mão da competitividade, a razão de ser do esporte, em nome de um contrato de trabalho, infelizmente são a tônica hoje da F-1. Massa, veja só, foi quase reverenciado pela chefia por ter deixado de vencer. “Você foi magnânimo”, disse ao brasileiro um membro da Ferrari pelo rádio. Senna, em 1990, recusando-se a deixar o francês Alain Prost ultrapassá-lo, pois perderia o título mundial se o concorrente chegasse na frente na prova, a última daquela temporada, jogou seu carro contra o do oponente, numa manobra que demonstra a sua gana pela vitória. Os dois abandonaram a corrida e o Brasil comemorou a segunda conquista de Senna. No ano anterior, foi Prost quem colidiu com Senna para impedir o brasileiro de vencer o campeonato.

Hoje, espremido no cockpit como mais um funcionário de um negócio que movimenta cerca de R$ 3,5 bilhões a cada prova, o piloto cumpre, religiosamente, as regras do mercado. Do contrário, está fora do jogo. “O corredor de automóvel é uma pessoa inteligente, fala bem várias línguas, é bem preparado fisicamente. É um fidalgo, mais do que um esportista, e não deveria se apequenar”, opina o ex-piloto Clemente. “Ter um herói nacional nesse circuito é importante para o Brasil, pois nos coloca na roda mundial da elite.” Esse dia, porém, parece cada vez mais distante.

Na quinta-feira 29, em Hungaroring para a disputa do GP da Hungria, marcada para o domingo 1º, Massa afirmou que não irá mais ceder para Alonso. “Eu vou vencer”, respondeu ele, ao ser questionado sobre qual seria sua atitude se a situação voltasse a se repetir. “Eu falei com todo mundo dentro do time. Como eu disse, eu não estou aqui só para correr, estou aqui para vencer.” Atitudes, no entanto, valem mais do que palavras.

Competitividade na história
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DESDE OS PRIMÓRDIOS
Competir é da natureza humana, como forma de sobrevivência

Competir é da natureza humana. Nos primórdios, a competição era para sobreviver, com a disputa diária por comida, água e abrigo, além de pares para se reproduzir. Da necessidade de estar pronto para esses desafios surgiu o hábito do treino. O treino, por sua vez, criou atletas aptos fisicamente para diferentes atividades – e daí para esses atletas competirem entre si foi um pulo. Inicialmente as disputas podiam levar à morte, já que muitas das habilidades treinadas eram militares. Aos poucos, porém, o esporte se institucionalizou como a disputa pelo prazer da disputa. A primeira olimpíada da antiguidade, no século VIII a.C., foi um marco nesse sentido. A partir dali, o que se viu foi a evolução dos parâmetros que regem o esporte à medida que os povos se civilizavam. “Há quem chame a competição esportiva de manifestação simbólica da guerra”, diz a socióloga do esporte Heloísa Baldy, da Universidade de Campinas (Unicamp). É fácil associar uma disputa entre dois pilotos de Fórmula 1 a uma guerra. Agora não há lógica para explicar o que leva esse mesmo guerreiro a entregar a vitória ao seu principal oponente. Foi o que fez Felipe Massa, contradizendo todos os ideais esportivos.


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