Vai entrar água no chope do governador do Pará, Simão Jatene (PSDB). Uma blitz em agosto passado sobre irregularidades trabalhistas na fábrica em Belém da Cervejaria Paraense S/A – Cerpasa, fabricante da cerveja Cerpa, acabou derramando provas de um caixa 2 clandestino no qual bebeu a campanha eleitoral do candidato tucano. Engarrafada pelo Ministério Público do Pará, a denúncia desceu redonda na mesa do procurador-geral da República em Brasília, Cláudio Fontelles, no dia 27 de outubro, e deve colocar Jatene numa situação política estupidamente gelada: denunciado agora por financiamento ilegal, o governador pode ser cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral, onde já flui uma encorpada denúncia do PDT de uso da máquina do governo tucano de Almir Gabriel na campanha de 2002 que elegeu Jatene seu sucessor.

Quando o fiscal do Ministério Público do Trabalho, acompanhado de um procurador e dois delegados da Polícia Federal, chegou à sede da Cerpa, às margens da baía do Guajará, na manhã de 12 de agosto, pegou uma funcionária do departamento pessoal com a boca na botija: Ana Lúcia Santos separava os envelopes e contava R$ 300 mil em notas miúdas com que fazia o pagamento “por fora” dos funcionários, sem registro em carteira. Uma tonelada de documentos e quatro computadores apreendidos acabaram fazendo mais espuma do que se esperava: além da fraude trabalhista, os agentes recolheram relatórios explícitos da troca de favores entre a empresa e Jatene, com datas e valores revelados com a franqueza que só se vê e ouve em mesa de botequim. Num texto trôpego, o burocrata da Cerpa descreve a decisão de agosto de 2002, em plena campanha eleitoral: “Ajuda a campanha do Simão Jatene p/Governo, reunião feita com Dr. Sérgio Leão, Dr. Jorge, Sr. Seibel, a partir de 30/08/02 (toda Sexta-feira), R$ 500.000, totalizando seis parcelas no final.”

Maracutaia – Seibel é o alemão Konrad Karl Seibel, fundador e dono da Cerpa. Leão é Francisco Sérgio Leão, hoje o poderoso secretário especial de Governo,  uma espécie de José Dirceu local, que na época presidia a comissão estadual que avaliava a política de incentivos. E a Cerpa tomou um porre de incentivos. Em 2000, no governo Almir Gabriel, ganhou de presente o perdão da dívida de quase R$ 47 milhões de ICMS atrasado e uma dezena de autuações por fraude e sonegação. Uma caixa com 24 garrafas de cerveja, com valor de R$ 21, viajava com nota fiscal de R$ 3, segundo apuraram os promotores.

Em contrapartida ao perdão, acusa a representação do INSS enviada ao procurador-chefe do Ministério Público do Pará, Ubiratan Cazeta, a Cerpa prometia contribuir  com R$ 4 milhões para a campanha de Jatene, “além de se comprometer  a efetuar outros pagamentos no montante de R$ 12,5 milhões”. Os primeiros R$ 3 milhões foram pagos em seis parcelas de R$ 500 mil – a última exatamente no dia da eleição, 3 de outubro. O troco de R$ 1 milhão foi pago 21 dias depois.  O reforço de R$ 12,5 milhões, conforme os livros de contabilidade apreendidos na blitz, foi pago em módicas prestações diluídas durante do final do mandato de Gabriel e nos dois primeiros anos do governo do sucessor, em 2003 e 2004. A cota final de R$ 6 milhões foi parcelada em dez vezes – a última delas programada para agosto passado.

Nenhum pagamento é contabilizado como doação de campanha. Nas fichas de lançamento da Cerpa, processadas pelo assessor da diretoria Pedro Valdo Saldanha Souza, a caixinha de Jatene é camuflada como “despesa de mesas e cadeiras para postos de venda” ou “compra de brindes de fim de ano”. Na maracutaia sobrou até para a santa: no final de agosto, poucas semanas antes das eleições, a Cerpa repassou R$ 202.050 para a campanha tucana, disfarçados de “patrocínio das festividades do Círio de Nazaré”, a maior festa católica da Amazônia. As ligações nada religiosas da Cerpa com Jatene se estreitaram com a vitória apertada do PMDB (51%) sobre o PT (48%). Nove meses depois da posse, Jatene assinou três decretos num único dia, 29 de setembro de 2003, concedendo à Cerpa um desconto de 95% no ICMS devido ao Estado e prorrogando seus benefícios fiscais por mais 12 anos, ao lado de outras 37 empresas. Os favores levaram a deputada estadual Araceli Lemos (PT) a entrar com ação popular na Justiça de Belém contra o governo do Estado por favorecimento ilícito à Cerpa. O caixinha da cervejaria é tão constrangedor para Jatene que ele nem é citado em sua prestação de contas oficial junto ao TSE. Existem apenas três doadores declarados por Jatene: o próprio PSDB, com R$ 2,5 milhões, e duas empresa pequenas, que doaram irrisórios R$ 32 mil. A Cerpa, que pelos documentos apreendidos doou um total de R$ 16,5 milhões, antes e depois da campanha, não foi sequer citada por Jatene. Nos gastos de campanha, o governador foi igualmente lacônico: cita 152 fornecedores, mas identifica apenas cinco com nome e CNPJ, como manda a lei eleitoral.

Disfarce – O INSS e o Ministério Público descobriram nos arquivos apreendidos que a burocracia da Cerpa é uma barrica de irregularidades. As despesas normais são transcritas em recibos com motivos diversos. Um cheque do Bradesco no  valor de R$ 9,5 mil foi pago a uma  empresa de projetos, a Prestec, supostamente para “reformas no prédio administrativo”. Na verdade, pagou as grades e a pintura na casa do comandante do Centro de Instrução Almirante Braz de Aguiar (Ciaba), em comprovante passado em documento da Marinha do Brasil. Um recibo de R$ 1 mil, dado por “doações e contribuições”, descreve surpreendentemente o que está escrito: corresponde a uma “doação mensal” que a Cerpa faz regularmente ao deputado estadual e radialista Luis Eduardo Anaice (PMDB), pupilo de Jader Barbalho e astro do programa policial Barra Pesada. O deputado ganha o mimo e ainda dá recibo: “Desde já agradeço”, assina seu chefe de gabinete, Fernando França.

O dono da cervejaria, Karl Konrad Seibel, pode cair numa serpentina de confusões ainda maiores. Ele e sua mulher, Jutta, aparecem no banco de dados do MTB Bank movimentando US$ 3,7 milhões em quatro operações nos dias 7, 13, 24 e 28 de maio de 2002, três meses antes do primeiro pagamento à caixinha de Jatene. Seibel sacou o dinheiro de sua conta no Credit Suisse First Boston, nas cidades suíças de Interlaken e Zurique, e repassou os dólares para a conta da Agata International Holding, uma offshore baseada no paraíso fiscal de Tortola, capital das Ilhas Virgens Britânicas. A trajetória, segundo o Ministério Público, indica repatriação clandestina de dinheiro. A holding, que lavou cerca de US$ 5 bilhões em 12.670 operações suspeitas, é controlada pelos doleiros Ellie Frederick, João Paulo Karmann e Vicente Paulo Gragnano, radicados em São Paulo. Estes novos dados da cervejaria já circulam pelo Ministério Público e pela CPI do Banestado, ameaçando entortar ainda mais a cambaleante situação política do governador Simão Jatene.