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O termo é estranho, mas o significado é bem conhecido. A palavra bullying se refere às agressões e humilhações praticadas por um grupo de estudantes contra um colega, algo até comum no dia-a-dia escolar, mas que está longe de ser considerado normal. São xingamentos, ofensas, constrangimentos ou agressões físicas que geram angústia, sofrimento e podem causar danos psicológicos imensuráveis nas vítimas. Essas agressões, que costumavam aparecer na adolescência, estão sendo detectadas entre crianças, cada vez mais cedo. Tanto nas escolas públicas quanto nas particulares, onde os altos muros que as separam do mundo externo, em vez de protegê-las dos perigos “de fora”, muitas vezes alimentam atos ainda mais violentos cometidos do lado “de dentro”, uma vez que os pais não costumam levar as ocorrências às delegacias.

Diante da prática disseminada, no dia 8 de agosto, a Justiça brasileira proferiu uma decisão inédita. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal condenou uma escola particular de Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, a indenizar em R$ 3 mil a família de um garoto de dez anos que sofreu diversas agressões por um grupo de cinco alunos. Yan tinha sete anos quando se mudou do município de Águas Lindas para a cidade. “Queria que o meu filho tivesse acesso a uma educação de qualidade. Não havia boas escolas onde morávamos”, diz a mãe, Rosemeire Rodrigues. Empolgado com a nova escola e assíduo nas aulas, o menino aprovou imediatamente a escolha.

Dois meses depois, sem nenhum motivo aparente, começou a demonstrar desinteresse pelo colégio. “Ele estava em pânico e dizia que não queria ir às aulas, mas não falava o porquê”, lembra Rosemeire. No mês seguinte, Yan não conseguiu mais esconder a verdade dos pais. Ele chegou em casa com a mão perfurada e foi obrigado a contar o que havia ocorrido. Dois garotos seguraram o menino enquanto um terceiro pregou a sua mão na parede da casinha de boneca do colégio. “Fui na escola e a diretora disse que era coisa de menino, que tinha sido uma brincadeira, mas que não iria se repetir”, conta a mãe. A promessa da diretora não se cumpriu. Poucas semanas depois, Yan chegou em casa vomitando e disse que havia comido algo estragado. Desconfiada, a mãe exigiu a verdade e, estarrecida, soube que o menino havia tomado sucessivos socos na barriga de cinco garotos do colégio e que eles ainda haviam tentando enforcá-lo. A escola nada fez.

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Rosemeire decidiu transferir o filho para outra instituição de ensino, mas não conseguiu vaga. Desesperada, pediu licença do trabalho para cuidar pessoalmente da segurança do menino. “Ficava escondida atrás da cerca do colégio para ter certeza de que nada aconteceria com ele”, conta. Quando pensou que o problema estaria resolvido, voltou ao trabalho e o pior aconteceu. Os garotos pegaram Yan desprevenido e esfregaram o rosto dele no chão e furaram o seu pé. Yan não voltou mais à escola. A mãe decidiu ir à delegacia de proteção à criança e ao adolescente e prestar queixa. “O policial me disse que dificilmente aquelas crianças seriam punidas e recomendou que eu entrasse com um processo na Justiça contra a escola”, conta Rosemeire.

O pedido foi indeferido na 1ª instância, sob o entendimento de que se tratava de “coisa de criança”. Rosemeire não desistiu e recorreu. Por unanimidade, a Justiça condenou a escola por negligência. “Jamais desistiria de fazer justiça para o meu filho”, conta a mãe, que lidera uma campanha de combate à violência nos colégios do País. Além da escola, que, como prestadora de serviço, tem o dever de zelar pela integridade física e psicológica dos alunos, o pai do agressor também pode ser punido, mesmo que não tenha conhecimento dos atos do filho. “É como um jovem que rouba a chave do carro do pai e atropela uma pessoa. O pai responde a um processo civil. Não é porque se trata de um menor que haverá impunidade”, diz o defensor público Ruy Cruvinel Filho, que assumiu o caso na Justiça.

Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia) revela que 28% das crianças brasileiras já foram vítimas de bullying nas escolas e 15% sofriam agressões todas as semanas. Dados do Centro Multidisciplinar de Estudos e Orientação sobre o Bullying Escolar, que acompanha pesquisas em ao menos oito cidades do País, revela que 45% dos estudantes de ensino fundamental do País já foram vítimas, agressores ou ambos. Nos Estados Unidos, segundo levantamento da instituição Health and Human Services, 30% das crianças entre seis e dez anos sofrem bullying a cada ano. No ano passado, um grupo de 30 pesquisadores europeus lançou um documento de alerta para autoridades e cientistas, apontando que atualmente 200 milhões de crianças e jovens são vítimas da prática em todo o mundo. A expressão, que significa tiranizar, amedrontar e brutalizar, nasceu do termo inglês ‘Bull’ (valentão, tirano e brigão). Pode começar com um tapa na orelha, um xingamento ou uma piada de mal-gosto, e partir para tapas, socos na barriga, pontapés e todo o repertório de agressões comuns às gangues de bairro.

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O fenômeno, típico das escolas americanas, se tornou uma realidade no Brasil a partir da década de 90 no ensino privado. A prática, considerada por muitos diretores de escola como “briguinha de criança” expõe a crueldade precoce dos menores e a omissão dos dirigentes da instituição, professores e pais no trato com o problema. A escola finge não ver para preservar a imagem dos alunos, das famílias ou o nome do colégio. A falta de informação colabora com a perpetuação das “pequenas” crueldades. Normalmente, os pais são os últimos a saber que o filho está sendo agredido na escola, local onde ele deveria estar seguro.

Qual o perfil da vítima e do agressor? A psicopedagoga Maria Irene Maluf adverte para os padrões de comportamento. “Normalmente, a vítima tem um quadro de baixa auto-estima. O “cabeça” do grupo de agressores é o mais inteligente e nem sempre é o que bate. Os que agridem são meninos que têm necessidade de aceitação no grupo e temem ser a próxima vítima. Dificilmente teriam coragem de agredir sem a orientação do líder”, afirma. As meninas tendem a praticar o terror psicológico e a manipulação contra as colegas. Os meninos tendem a se autoafirmar pela força física e partem para a agressão contra os demais. Reféns do jogo de poder, raramente as vítimas contam aos pais o que está ocorrendo para evitar uma possível retaliação dos agressores, por temer ameaças à própria família ou para não serem vistos como o filho frágil em casa. Foi por medo de decepcionar os pais e sofrer agressões ainda mais violentas pelos colegas que um garoto de dez anos silenciou mesmo sendo vítima constante de bullying no colégio Rio Branco, um dos mais tradicionais de São Paulo. As agressões ocorriam dentro e fora da sala de aula. Começaram de forma sutil, com golpes com régua e flauta e o chamado “pedala”, que é o tapa na orelha.

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Como as agressões não foram devidamente contidas e reprimidas pelos professores, inspetores e pela orientadora, elas se tornaram mais violentas, chegando aos pontapés. Intimidada pelo grupo, a vítima perdeu a capacidade de reagir. Ao tomar conhecimento do fato, a direção chamou as crianças agressoras, que confirmaram a prática de bullying sem que houvesse qualquer razão. Em seguida, seus pais foram convocados. Alguns caíram em prantos e outros se revoltaram ao saber que a escola não estava coibindo adequadamente desvios de conduta dos seus próprios filhos. Em relação à vítima, o que se colocou foi um pedido de desculpas, a promessa de um trabalho para fortalecê-la e a sugestão – e não oferta – de apoio psicológico. “Não cogitamos a expulsão dos agressores mesmo que o fato se repita. São crianças muito novas. Acreditamos que medidas educativas podem resolver a situação”, afirma Esther Carvalho, diretora-geral do Colégio Rio Branco, que não soube dizer por que a diretoria da escola não tomou conhecimento das agressões quando elas aconteceram.

Casos de bullying também já ocorreram em outras escolas tradicionais de São Paulo, como o colégio São Luís, Santo Américo, Notre Dame e Santa Maria, que adotaram programas de prevenção e conseguiram coibir a prática. “O importante é detectar o bullying quanto antes para que seja possível intervir cedo, procurar as famílias dos agressores e do agredido e aplicar as sanções disciplinares”, afirma Cesar Pazinatto, coordenador pedagógico do ensino fundamental do colégio Santo Américo, que providenciou a separação dos alunos envolvidos no fato. Denúncias da prática têm chegado às Varas da Infância e da Adolescência. Mas isso ocorre com mais freqüência nas agressões ocorridas em escolas públicas, onde a tutela do Estado é direta. Muitas escolas particulares abafam os casos por medo de perder clientes. Outro aspecto preocupante é que muitas instituições de classe, ao sugerir apoio psicológico, tentam reforçar a tese de que crianças agredidas podem ter uma propensão a isso – como se o problema estivesse na vítima e não na instituição. É um mecanismo sutil de os colégios se distanciarem do problema. “As escolas tendem transferir a culpa para a família e vice-versa. Não adianta os pais colocarem a culpa nas más companhias e o colégio dizer que é o aluno que não sabe se defender e que a culpa é dos pais”, pondera a psicopedagoga Maria Irene.

Mesmo que a prática seja coibida nas escolas, os danos podem ser irreversíveis à criança. “O trauma permanece e gera uma baixa auto-estima no menor, que leva cerca de três anos para se recuperar. Algumas nem se recuperam”, alerta Maria Irene. Entre as conseqüências do pós-bullying, estão danos à capacidade de aprendizado, que pode se tornar superficial, dificuldades de concentração nas tarefas escolares – a criança pode ficar preocupada com a abordagem de agressores a qualquer momento – e um permanente complexo de perseguição, que pode se expandir para todas as áreas da sua vida. A omissão das escolas na solução dos problemas torna os casos cada vez mais graves. E, quando eles explodem, são erupções vulcânicas que causam um efeito perturbador em toda a instituição. Abalam as famílias das vítimas e também dos agressores.

Com as novas tecnologias, outra modalidade de bullying está se popularizando. Os agressores mandam torpedos e e-mails ofensivos para a vítima, fazem trotes, colocam vídeos no YouTube com imagens dela sendo espancada na escola e lançam calúnias no Orkut e em blogs. Como não é fácil serem identificados, os agressores se sentem livres para praticar a crueldade online. Em novembro do ano passado, o YouTube ganhou o Beatbullying, um canal de combate à prática. A página tem vídeos de celebridades, jovens e escolas que falam sobre o assunto. Nos Estados Unidos, um projeto de lei da Califórnia prevê a expulsão dos alunos que praticarem o cyberbullying contra os colegas. Assim como o bullying tradicional, o cyber também deve ser denunciado às autoridades nas delegacias tradicionais ou nas especializadas em crimes eletrônicos. Com autorização judicial, os agressores podem ser identifi- cados. É preciso dar um basta para que os agressores juvenis de hoje não se tornem os criminosos de amanhã.