Foram as mulheres carentes do Pará que deram à pediatra e sanitarista Zilda Arns o único adereço “egocêntrico” que ela exibe de vez em quando. É uma plaquinha em ouro escrita “Zilda”. “Fiquei meio constrangida de usar alguma coisa com meu nome, mas o carinho daquelas mulheres me fez superar o constrangimento”, diz ela. As mulheres do Pará adoram Zilda Arns porque ela personifica a esperança de vida para seus filhos.

Mas quem não adora essa mulher de 67 anos, presidente da Pastoral da Criança, organismo de ação social da CNBB, guardiã de mais de 1,5 milhão de crianças menores de seis anos e de 74 mil gestantes, única indicação oficial do governo brasileiro, em todos os tempos, a um Prêmio Nobel? Mais de 500 mil assinaturas de adesão foram encaminhadas à Pastoral em apoio à candidatura. Oficialmente, ela não ganhou. O Prêmio Nobel da Paz foi para a Organização das Nações Unidas (ONU) e seu secretário-geral Kofi Annan. Na vida real, porém, Zilda, irmã mais nova de dom Paulo Evaristo Arns – uma das cabeças mais iluminadas da Igreja Católica –, ganha um Nobel todos os dias. “O nosso Prêmio Nobel da Paz já veio pelo fato de salvarmos da morte mais de cinco mil crianças a cada ano e de recuperarmos outros milhares da desnutrição”, disse ela, reconhecendo “a excelente decisão” do Comitê Nobel da Noruega num contexto de guerra que exige entidades e pessoas neutras para mediar os conflitos tão perversos.

Zilda Arns tem rara grandeza. Criada em 1993, a Pastoral atende todos os meses um milhão de famílias em 3,3 mil municípios brasileiros, onde a mortalidade infantil caiu de 34,6 para 13 em cada grupo de mil crianças nascidas. Um verdadeiro milagre. No Exterior, a Pastoral foi implantada em 13 países da América do Sul, África e Ásia.

A Pastoral faz bem o que o governo faz mal: acompanha as crianças antes mesmo do nascimento, com visitas domiciliares e orientação para o aleitamento materno. Mas Zilda Arns é justa: “Sem nenhum conteúdo político, digo que o ministro da Saúde, José Serra, foi o primeiro ministro a dar atenção à Pastoral”, diz. “Quando fui a Brasília pedir recursos, ele não quis olhar nada, simplesmente disse ‘quero dobrar a nossa participação’.” O Ministério da Saúde, no qual Zilda Arns é representante da CNBB e tem a missão de cuidar dos índios, é, de fato, o principal provedor da Pastoral, garantindo 80,29% de seus recursos financeiros. No ano passado, a Pastoral recebeu do governo e da iniciativa privada US$ 8,5 milhões.

Com 150 mil voluntários em todo o País (90% deles pobres e negros), o trabalho da organização não trata apenas de atender à pobreza. É um trabalho de formação da pessoa, de cidadania, muito simples em sua concepção. A criança é cuidada junto com a família, que, por sua vez, é orientada pelos líderes comunitários para o controle das doenças mais comuns nas comunidades carentes, como desidratação e problemas respiratórios. Mães, principalmente, aprendem a fazer soro e a adotar uma medicação caseira baseada nos princípios da fitoterapia. São pequenas ações com enorme repercussão positiva.

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Mãe de cinco filhos e avó de oito crianças, Zilda não tem dúvidas de que o primeiro ano de vida da criança é decisivo para seu desenvolvimento físico e psicológico. “Criança maltratada antes de um ano tende a ser violenta, assim como as que são amamentadas por um período mais longo escutam, falam e sorriem melhor.”

Cheia de esperanças no Brasil – “porque o povo é extraordinariamente solidário e alegre e porque o modelo da política social está mudando e se descentralizando” – define seu trabalho como de “prevenção da violência e redução da fome e da miséria para evitar as mortes silenciosas de nossas crianças”. Os líderes comunitários da Pastoral organizam mensalmente reuniões de educação comunitária para discutir com os pais questões como educação integral das crianças, violência doméstica, alcoolismo, gravidez precoce, drogas. “A vida deve ser vivida com plenitude, o que significa saúde, educação, alegria, cultura”, diz Zilda.

Isso ela herdou do pai, Gabriel, neto de alemães, e da mãe, Helena, filha de alemães. Herdou também os olhos verdes, a estatura alta, os cabelos claros, a extrema generosidade com o ser humano. Eles fundaram Forquilhinha, em Santa Catarina, com uma fábrica de queijos. Foi ali que Zilda nasceu e cresceu com seus 12 irmãos, dois adotivos, cinco deles religiosos, dom Paulo e frei João e as irmãs Maria Gabriela, Maria Hilda e Maria. Todos estudaram, para felicidade dos pais. Quando tinha 11 anos, a família mudou para Curitiba, no Paraná, e foi ali que Zilda se formou médica e sanitarista, abriu um consultório dentro de sua casa (para ficar perto dos filhos) e passou 27 anos atendendo crianças carentes. Muitos pais batiam à sua porta de madrugada, pedindo socorro. Dra. Zilda nunca falhou. Ela era médica da Secretaria de Saúde do Estado, uma bênção no sistema público de saúde. Ficou viúva em 1978, com todos os filhos em fase de crescimento. Mas não perdeu a religiosa fé na vida nem o sorriso terno, igualzinho ao irmão dom Paulo. É na casa dele, no bairro do Jaçanã, na zona norte de São Paulo, que ela costuma ficar quando passa por São Paulo. Tem o irmão querido um jardim florido e uma paisagem que é impossível imaginar existir naquela região da cidade.

Zilda Arns é vaidosa. “Fui aprender a me maquiar depois dos 60 anos”, diz com um enorme sorriso. Aprendeu direitinho a usar tudo que pode deixá-la ainda mais bonita, rímel, sombra, batom e é craque no manejo da dupla secador-escova. Adora esportes – “que possibilitam às pessoas aprender a ter limites, ganhar, perder, ter garra e perseverança” – e foi campeã de vôlei três vezes quando estava no científico, curso que foi substituído pelo colegial. Quando era solteira, lia dois livros por semana. A média caiu com o casamento, mas o hábito da leitura não foi perdido.

Zilda Arns convive com o pior dos mundos: crianças com fome, famílias desestruturadas, mulheres violentadas, epidemias. Mas nunca perde o equilíbrio e o sorriso terno. “A minha formação pessoal me leva sempre a olhar o lado positivo das coisas.”

Com esse olhar positivo, a Pastoral criou projetos complementares à saúde e à educação para a geração de renda e ajuda mútua, possibilitando a milhares de famílias a reintegração ao mercado de trabalho ou a formação de seu próprio negócio. Hoje são 1.551 projetos organizados e em funcionamento. Também criou o programa de alfabetização de jovens e adultos, que hoje tem mais de 36 mil alunos em turmas espalhadas pelo País. “Temos consciência de que mães e líderes comunitários alfabetizados reduzem muito o risco de mortalidade das crianças.”

Religiosa, Zilda Arns trabalha “para que todos tenham vida em abundância, como Jesus ensinou”. E tem um crédito extraordinário para ser feliz. “Eu adoro música.” Sabe o que ela ouve? Cantos alemães, o CD dos índios guaranis, Chico Buarque, a orquestra de Maceió… Zilda Arns é uma brasileira muito especial. Por isso que as mulheres do Pará escreveram seu nome em ouro.


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