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GENEROSO
Filho de uma escrava, Gama não cobrava para obter a alforria de seus clientes

Ele tinha apenas 10 anos de idade quando o pai, arruinado por dívidas de jogo, vendeu-o a um traficante de escravos, em 1840. Numa tacada só, perdeu a família, os direitos, a dignidade, e poderia ter perdido o futuro se não fosse um predestinado a superar dificuldades vida afora. Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) conseguiu aprender a ler e a escrever aos 17 anos, com a ajuda de um amigo, e mudou radicalmente a biografia que parecia ser seu destino: trabalhar, trabalhar e morrer anônimo, como acontecera a tantos outros negros brasileiros. Luiz Gama, como ficou conhecido, deixou de ser escravo em 1848, aos 18 anos. Para conseguir a mudança de status, comprovou, com documentos, que era filho de pai livre, um fidalgo português, e mãe negra liberta. Virou advogado, além de poeta, e trabalhou incansavelmente pela causa abolicionista. Advogava de graça para escravos desesperados que batiam à sua porta e triunfou em tribunais, onde devolveu a liberdade a mais de 500 pessoas. Nunca revelou o nome de seu pai. Se por um lado poupou-o de ser excomungado pelo gesto vil de vender um filho, por outro, preservou a si mesmo de ter de carregar o nome do traiçoeiro progenitor. A leitura de sua história, agora recontada nos recém-lançados livros “O Advogado dos Escravos” (Lettera.doc), de Nelson Câmara, e “Luiz Gama” (Selo Negro), de Luiz Carlos Santos, só nos faz lamentar um descompasso: que ele tenha morrido pouco antes da Abolição da Escravatura no Brasil, em 1888.

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COMBATIVO
Biografias ressaltam o temperamento guerreiro de Gama, que foi vendido pelo pai aos 10 anos

A grande diferença entre as duas obras é que a primeira é uma alentada biografia com ilustrações e documentos, se não inéditos, pouco conhecidos. Mas ambas falam do mesmo homem que fez da advocacia um sacerdócio. Nascido em Salvador, na Bahia, ele tinha herdado o temperamento guerreiro de sua mãe, que não aceitava a vida como ela parecia que tinha que ser. Negra africana da nação nagô, Luiza Mahin era revolucionária e participava de insurreições. Sumiu em 1837: não se sabe se foi deportada para a África ou se foi morta. Sem opção, Luiza partira para o confronto.

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RETRATO
Foto de escrava feita por Marc Ferrez. Gama conseguiu libertar 500 negros

Já o filho, optou pelo Judiciário. Em uma dessas batalhas para alforriar um escravo, deparou-se com o argumento do dono do negro: “Por que queres ser infeliz sozinho? O que é que te falta lá no cativeiro?” Gama arrematou sua vitoriosa petição explicando a este senhor: “Falta-lhe o direito de ser infeliz onde, quando e como queira.” Luiz Gama, personagem importantíssimo no rompimento dos grilhões da escravidão, morreu pobre, em São Paulo. Seu velório fez a capital parar: três mil pessoas acompanharam seu corpo até o Cemitério da Consolação, onde está enterrado.

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Leia trecho dos livros abaixo


“O advogado dos escravos", de Nelson Câmara

CAPÍTULO I
Menino vendido como escravo

“[Eu] não possuo pergaminhos, porque a inteligência repele diplomas como Deus repele a escravidão.” Luiz Gama

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu na cidade de Salvador, Estado da Bahia em junho de 1830, e segundo ele em carta a amigo, fora batizado em 1838 na Matriz do Sacramento, na cidade de Itaparica, próxima à capital. Seu tataraneto Benemar França, hoje engenheiro em São Paulo, nos informa que o endereço é rua Bângala, nº 2 (atualmente 281), no bairro de Freguesia de Sant’Ana, em Salvador, em cujo frontispício foi colocada uma placa em sua homenagem.
Filho de negra africana livre da região da Costa da Mina, pertencente à nação nagô, chamada Luiza Mahin. Conta a história que essa negra era magra e bonita, com dentes muito alvos e pele reluzente. Era conhecida pelo gênio irracional e violento, circunspecta, quitandeira, entregandose ao comércio de vendas de frutas, muito popular em Salvador. Talvez pelos graves “problemas” étnicos e raciais de que era portadora, nunca se converteu ao cristianismo, sendo pagã. Era revolucionária natural, sempre com o objetivo de libertar sua raça dos grilhões da escravidão. Foi presa diversas vezes por suspeitas de envolvimentos em movimentos de escravos.
Supostamente participou da maior rebelião negra ocorrida no Brasil no Segundo Império, a Revolta dos Malês, em 1835.
O próprio Luiz Gama descreveu sua mãe como mulher altiva e revolucionária, da qual certamente teria herdado o temperamento.
Arthur Ramos (1956, p. 52-53) apresenta dados sobre a liderança revolucionária da mãe de Luiz Gama, na Bahia, bem como sua origem nobre africana:

“Nestes movimentos insurrecionais, especialmente no de 1835, destacaram-se algumas figuras legítimas de líderes, entre os negros. A história guardou os nomes de Luiza Mahin, de Belchior e Gaspar da Silva Cunha, de Luis Sanim, de Manuel Calafate e Aprígio, de Elesbão do Carmo (Dandará), de Pacífi co (Licutan). Eram todos negros nagôs ou haussas islamizados, que mantinham nas suas casas, também escolas e igrejas maometanas, reuniões frequentes, onde eles falavam em nagô, difundindo os preceitos do culto, ou articulando os movimentos de rebeldia.
Luiza Mahin, que se julga ter sido princesa na África, era mãe do poeta negro Luiz Gama, a que nos referiremos em outro capítulo. Não há documentos precisos a seu respeito. Sabese que seus pais eram reis no continente negro. Arrancada violentamente do seu meio e transportada para o Brasil como escrava, Luiza Mahin foi um destacado elemento de conspiração entre os negros oprimidos. Sua casa, na Bahia, tornou-se um dos fortes redutos de chefes da grande revolta de 1835.
Ninguém sabe o seu fi m. Mas o seu nome permaneceu na história e na lenda como um grande símbolo do valor da mulher negra no Brasil”. (RAMOS, 1956, p. 52-53)

 

“Luiz Gama”, de Luiz Carlos Santos

Introdução – Além de "bode", subversivo

“Insubmisso”, “bode” e “agente da Internacional Socialista”¹ foram alguns dos adjetivos que Luiz Gonzaga Pinto da Gama recebeu de seus adversários, ao longo de sua vida marcada pela luta contra a escravidão negra, em São Paulo, na segunda metade do século XIX. Entretanto, foi como “Orfeu de carapinha”, “precursor do abolicionismo no Brasil” e “poeta da negritude” que Luiz Gama tornou-se uma das mais importantes personalidades da nossa história na defesa da liberdade.
A insubmissão acompanhou-o desde sempre – herança do comportamento rebelde atribuído aos negros baianos, que não aceitavam a escravidão e resistiam com as armas que tinham, como aconteceu em 1835, na Revolta dos Malês². “Cabra”, “bode” e “mulato” eram as denominações pejorativas dadas aos mestiços no Brasil imperial e escravista e, com alguma frequência, no início da República. Os mesmos insultos se transformaram em uma das mais conhecidas poesias satíricas escritas por Gama para ironizar aqueles que só viam na Europa as origens brasileiras.
E, na defesa dos negros africanos “criminosamente reduzidos à escravidão, Luiz Gama foi acusado de ser agente da Internacional e organizador de uma insurreição de escravos em um momento histórico em que a Europa se transformava. As utopias socialistas ganhavam adeptos em todo o mundo ocidental e, na mentalidade da conservadora e escravocrata elite paulista, o advogado que já fora escravo se tornava um subversivo.
H oje, na maior cidade do país, quem caminha pela rua Luis Gama, próximo ao Largo do Cambuci, provavelmente não imagina quem foi o homem cujo nome aparece nas placas. Pois é assim que a memória urbana preserva, no silêncio anônimo dos trajetos, a história.
Passamos todos os dias diante de grandes e pequenos acontecimentos históricos sem saber. A toponímia guarda na simplicidade das placas de ruas e avenidas histórias que o tempo transforma em referências geográficas urbanas. São substantivos próprios que o dia a dia se encarrega de tornar nomes comuns, desconhecidos. A memória nacional jaz silenciosa por esquinas, avenidas, ruas, praças e largos de nossas cidades.

1. A Primeira Internacional Socialista surgiu em 1864 de uma articulação de lideranças sindicais e ativistas socialistas. Seu objetivo era organizar e promover a libertação dos trabalhadores oprimidos em todo o mundo.
2. Organizada por grupos negros islamizados que pretendiam tomar o poder na Bahia pela força das armas, a Revolta dos Malês foi frustrada graças à traição de um de seus integrantes, dias antes da eclosão. A maioria de seus organizadores foi morta, presa ou desterrada.



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