Nem a distância impediu que a pacata Osvaldo Cruz, cidade de 20 mil habitantes a 570 quilômetros de São Paulo, ecoasse o golpe militar de 1964. No dia seguinte, impressionado com o que ouvia no rádio, o garoto nissei de 13 anos anotou no seu diário: “Hoje, nada de normal.” Aos 54 anos, o sutil Luiz Gushiken é dono de uma biografia “nada normal”. Ex-bancário, ex-trotskista, ex-sindicalista, ex-deputado, ex-budista, místico sempre, quase filósofo e administrador formado pela Fundação Getúlio Vargas, Gushiken resistiu a dois tipos de câncer, uma septicemia, dois choques anafiláticos, um infarto, dois acidentes de carro, duas greves nacionais de bancos, quatro prisões no DOPS e quatro campanhas presidenciais do PT (as três primeiras fracassadas). “Ele é um sobrevivente”, resume sua mulher, Elizabeth, mãe de seus três filhos.

As últimas três décadas desta carreira quase anormal gravitaram em torno do amigo e companheiro de lutas sindicais Luiz Inácio Lula da Silva, que ele ajudou a fazer presidente. Por causa disso, agora como ministro-chefe da Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica da Presidência da República, Gushiken teve que trocar sua bucólica chácara em Indaiatuba (SP) pelo burocrático gabinete do bloco A da Esplanada dos Ministérios. “Estou provisório em Brasília, a serviço do presidente”, avisa, com um sorriso rasgado no rosto marcado pela barbicha e pelo cabelo curto cada vez mais branco, que lhe acentuam o ar zen de um mestre de artes marciais. Gushiken é o responsável pela vitoriosa campanha que há cinco meses, nas telas de tevê e nas páginas da imprensa, resgata a auto-estima nacional com o slogan “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”.

Lula não desiste nunca deste nissei, brasileiro, filho do fotógrafo e violinista Shoei Gushiken, que emigrou da ilha japonesa de Okinawa para o interior paulista nos anos 60. Funcionário do Banespa e estudante de filosofia, acabou se tornando discípulo do revolucionário Leon Trotski. No governo Geisel, Gushiken integrava a tendência trotskista Liberdade e Luta (Libelu), que ele abandonaria depois. “Saí porque a Libelu era contra o PT e contra o sindicato livre”, lembra Gushiken, então um líder bancário cada vez mais sintonizado com Lula. Juntos, fundaram o PT e a CUT (Central Única dos Trabalhadores). Nos tempos proletários, com barba negra e cabelos longos, Gushiken começava a ter problemas em casa. “Cabeludo era uma afronta para meu pai, que trazia uma rígida moral de sua terra. Foi um choque quando a Polícia Federal bateu lá em casa, pois ele achava que problema com polícia só podia ser coisa de bandido”, conta Gushiken. No auge da agitação sindical, por quatro vezes foi hóspede forçado do Dops.

Em abril de 1980, Lula é quem foi em cana – e Gushiken combateu o xadrez com xadrez. Espalhou tabuleiros pelo centro de São Paulo, promovendo partidas simultâneas entre bancários e o campeão paulista Herbert Carvalho, para
arrecadar fundos para a greve. Gushiken e o campeão levaram um xeque-mate do Dops e acabaram numa cela ao lado de Lula. A partir dali, Gushiken começou a construir a liderança política do amigo, com base no conselho de um velho dirigente bancário: “Lula precisa falar sempre, todo dia. Lula precisa das massas como o peixe da água.” Gushiken aprendeu: “A partir dali, em qualquer palanque, em qualquer reunião, a gente levava o Lula.” Percorreu o País ao lado do amigo candidato e amargou, com ele, as derrotas nas campanhas presidenciais de 1989, 1994 e 1998. “Lula, estamos esquecendo uma coisa: precisamos conversar com os militares”, disse Gushiken, na primeira campanha, alertando para algo que, então, era uma heresia no bunker petista.

Na quarta tentativa presidencial de Lula, Gushiken já chegava vencedor: seis anos antes, ele derrotara um câncer nos testículos. Pouco antes da campanha de 2002, passou por uma nova prova: um câncer que lhe retirou boa parte do estômago, somada a uma crise de septicemia. Internado, Gushiken sofreu dois choques anafiláticos e foi para a UTI. Mas Lula não desistia do amigo. “Eu boto uma enfermeira ao teu lado e acertamos só dois dias de trabalho semanal no comitê”, insistiu. O samurai topou o desafio – e foi fundamental na campanha vitoriosa. Gushiken ajudou a passar pela goela do PT a “Carta aos Brasileiros”, documento que acalmou o mercado e lançou as bases de uma serena transição na economia. “A aliança com o PL foi decisiva, como prova de evolução na vida partidária”, emenda ele, o único no staff de Lula com autoridade para formatar e reformular as peças de campanha que brotavam da fértil cabeça de Duda Mendonça. “Lula sempre foi paz e amor. Um radical não teria construído um partido tão amplo e complexo como o PT”, lembra Gushiken.

O presidente devolve o elogio. “Eu não quero ao meu lado alguém que diga que tudo o que eu faço está certo. O Gushiken não é de esquerda nem de direita. Atua como profissional”, diz Lula, reforçando a lenda de que, no centro do poder, o “China” – como é carinhosamente tratado pelo companheiro nº 1 – é o único capaz até de mudar uma decisão do presidente. O ex-trotskista continua fiel ao marxismo: “Ele ajuda a refletir sobre a realidade e é a base da nossa indignação contra a injustiça.” Ex-budista, transitou pela Rosa-Cruz, pela umbanda, pela cabala e pelo zen-budismo, para repousar agora no remanso da fé bahá’i – religião que não possui dogmas, rituais, clero nem sacerdócio, surgida na antiga Pérsia, hoje Irã, em 1844.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias