Estava errado o poeta surrealista francês André Breton, quando numa conversa com o cineasta  espanhol Luis Buñuel, em 1955, lamentou o fim do escândalo na arte. Ao constatar que a própria provocação havia sido institucionalizada, Breton esqueceu-se que alguns setores da sociedade se mantêm intolerantes à liberdade de pensamento, caso da ala ultradireitista da igreja católica argentina. No dia 3 de dezembro, quatro integrantes do grupo Custodia visitaram a exposição León Ferrari – retrospectiva: obras 1954-2004, em cartaz até o dia 27 de fevereiro no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, e destruíram dez obras de um dos mais importantes nomes das artes plásticas daquele país. Aos gritos de “Viva Cristo Rey, carajo”, eles quebraram garrafas de uma instalação que fazia referência ao papel da Igreja na colonização da América. Julgaram as obras blasfemas. Temendo confrontos mais violentos, o próprio artista de 84 anos pediu o fechamento da mostra no dia 8, quando se comemorava o dia da Imaculada Conceição e havia sido programada uma missa em frente à instituição cultural, local que no passado fora um convento.

As obras que tanto incomodam os católicos argentinos fazem parte dos trabalhos mais explicitamente políticos de Ferrari, cuja retrospectiva reúne 400 obras. Em colagens, assemblage e instalações, o artista desnuda as relações da Igreja com o poder e a própria idéia de opressão contida nos textos bíblicos. E o faz com virulência, humor e ironia que só têm paralelo, por exemplo, nos filmes anticlericais de um Luis Buñuel, como L’age d’or e O estranho caminho de Santiago. O crítico e professor brasileiro Teixeira Coelho coloca Ferrari entre os nomes fundamentais da arte latino-americana. “No âmbito político e social, não consigo pensar em outro. Ele não é o único, mas é o que faz com força e audácia muito grandes.” Segundo Teixeira, o alvo de Ferrari em relação à Bíblia é múltiplo. “Sua crítica não é gratuita. Ele é um profundo conhecedor do assunto, aponta a insistência da Bíblia na violência, para ele o verdadeiro livro da perdição humana.”

Data de 1966, auge da guerra do Vietnã, a primeira incursão de Ferrari no terreno anti-religioso através da obra La civilización occidental e cristiana, que mostra um Cristo crucificado num caça americano F-107.  Diante das críticas, Ferrari escreveu: “É possível que alguém me demonstre que isto não é arte; não teria nenhum problema, não mudaria de caminho, me limitaria a mudá-la de nome: riscaria arte e a chamaria política, crítica corrosiva, qualquer coisa.” Ao longo de quatro décadas, sua verve polêmica se mantém firme em obras perturbadoras. Para denunciar a participação de artistas do passado no esquema de opressão do cristianismo, deu início, em 1985 – quando morou em São Paulo, fugido da ditadura argentina – à série Juicio final. No fundo de uma gaiola com pombos vivos são colocadas representações do juízo final, de autoria de Michelangelo, Giotto, Tintoretto e Rubens, entre outros, para serem cobertas de excrementos.

Ao lembrar a vista grossa do Vaticano em relação ao horror nazista, Ferrari justapôs uma imagem do papa, com sua capa vermelha, sobre uma foto em preto-e-branco de judeus exterminados, numa assombrosa colagem sem título da série Relectura de la Bíblia, de 1988.

Na mais recente série Infierno, de 2000, o artista colocou santos, virgens e sagrados corações de gesso em situações que lembram os tormentos anunciados para os incrédulos e pecadores nos círculos do inferno, simbolizado por liquidificadores, tostadeiras, microondas, frigideiras e máquinas de moer carne. Autora do texto León Ferrari: los años paulistas (1976-ca. 1984), sobre o período de intensa experimentação vivido pelo artista em São Paulo, a crítica de arte brasileira Aracy Amaral chama a atenção para a vitalidade da obra de Ferrari. “Ele continua ousado e extremamente criativo, segue com a mesma fúria que tinha aos 40, 50, 60 anos”, afirma. “Geralmente, as pessoas amansam sua ira, mas nele a juventude está à flor da pele, sempre voltada contra o establishment.”

Embora cause mais alvoroço pelas obras mais ideológicas, Ferrari desenvolveu uma produção variada, difícil de ser rotulada. Começou com escultura, passou pelo desenho, pelo videotexto e pela pintura, sempre retomada, explorando inclusive a escritura em telas, papéis, acrílico, vidro e até em manequins – como em Deuteronomio (1994), da série Maniquiés, com trechos da Bíblia caligrafados como linhas de um desenho. Não raro os textos são alterados até o extremo do ininteligível, caso de Carta a un general (1963). “Ele é um artista inclassificável”, afirma Teixeira Coelho, que chama a atenção para a sua produção mais formalista, como as fantásticas esculturas de aço inoxidável, de cuja série o Museu de Arte Contemporânea da USP possui Lembranças de meu pai (1977). “Costumo chamá-las de catedrais e ele concorda”, afirma o crítico. Pena que os fanáticos portenhos não tenham olhos para sua beleza.