O corpo de Jean Charles de Menezes desembarcou no aeroporto internacional Franco Montoro, em Guarulhos (SP), na manhã da quinta-feira 28, de um vôo da Varig procedente de Londres. Seu caixão foi carregado por soldados da Força Aérea Brasileira (FAB) e embarcado num avião militar Bandeirante com destino a Governador Valadares (MG). Lá, coberto com uma bandeira do Brasil, o esquife foi colocado num carro do Corpo de Bombeiros e transportado para sua cidade natal, Gonzaga, a cerca de 70 quilômetros de distância, onde foi ovacionado por uma pequena multidão que entoava o Hino Nacional. Não, Jean Charles não era nenhuma celebridade como Ayrton Senna, o piloto morto num acidente em Ímola, em 1994, cujo funeral os brasileiros testemunharam quase em estado de transe. O eletricista – era esta a profissão de Jean Charles – também não foi nenhum herói trágico como Tancredo Neves, cuja morte na véspera da posse na Presidência da República, em 1985, frustrou a renitente esperança de redenção nacional. Jean Charles de Menezes era apenas um brasileiro comum que, como milhares de outros, filhos de uma pátria madrasta, buscava melhor sorte no Exterior e acabou vítima de uma fatalidade.

Fatalidade? Aos 27 anos, Jean Charles foi executado pela Scotland Yard (a impecável polícia metropolitana de Londres) no dia 22 na estação de metrô de Stockwell, na esteira das quatro tentativas frustradas de atentados terroristas do dia anterior. O brasileiro não teve a menor chance: imobilizado por três policiais, levou sete tiros na cabeça e um no ombro. Os agentes, que estavam à paisana e o seguiam desde sua casa, no bairro de Brixton, suspeitavam que ele pudesse ser um perigoso homem-bomba e seguiram a orientação determinada pela Operação Kratos, o plano da polícia britânica para lidar com terroristas inspirado na experiência israelense: atirar para matar, destruir o cérebro do suposto homem-bomba para impedi-lo de detonar seus explosivos. “Ele parecia um coelho, uma raposa encurralada. Estava completamente petrificado. Foi uma cena muito estressante. Eu vi os policiais matarem aquele homem”, relatou Mark Whithy, um passageiro que estava sentado no trem em que o brasileiro foi assassinado. Jean Charles de Menezes era inocente, embora estivesse em situação irregular no Reino Unido, segundo as autoridades. Mas, mesmo admitindo o trágico engano, a Scotland Yard se apressou em justificar suas táticas antiterroristas.

“A polícia já está dizendo que foi uma execução legal, apesar de ter sido um erro. Mas não foi um erro. Eles atiraram nele oito vezes. Talvez tenha ocorrido um erro em algum outro momento durante o catálogo de desastres que levaram a isso. Mas havia uma predeterminação de matá-lo”, disse a advogada Gareth Peirce, uma das mais conhecidas defensoras dos direitos humanos do Reino Unido. Ela se referia ao fato de os policiais, apesar de estarem seguindo Jean Charles por suspeitar dele, deixarem-no embarcar num ônibus e só o abordarem no metrô de Stockwell. “Foi lamentável que pessoas em altos postos tenham corrido para justificar a ação da polícia antes que a apuração tenha sido concluída, porque há muitas questões pendentes. Se prevalecer o argumento de que a ação foi legal por conta dessa política de atirar para matar, que o governo adotou sem ninguém saber direito, não há garantia nenhuma de indenização para os familiares”, disse Peirce, que presta assessoria jurídica à família de Menezes. A advogada se notabilizou por denunciar casos polêmicos de violação de direitos humanos em nome do combate ao terrorismo. O mais conhecido deles foi o do irlandês Gerry Conlon e seu pai, Giuseppe Conlon, condenados injustamente por um atentado do IRA (Exército Republicano Irlandês) em 1974 num pub em Guildford. O caso virou tema do filme Em nome do pai, em que a atriz Emma Thompson interpreta o papel de Peirce.

Uma série de fatores ajudou a colocar a Scotland
Yard em situação ainda mais delicada. Em primeiro lugar, a prisão, na quarta-feira 27, do somali Yasin Hassan Omar, 24 anos, um dos quatro suspeitos
pelos atentados do dia 21 (os outros três suspeitos
dos atentados do dia 22 foram presos na sexta-feira 29). Omar foi detido em Birmingham, numa operação
que envolveu mais de 50 policiais, que desta vez
não precisaram usar a licença para matar. Em vez
disso, utilizaram uma pistola “Taser Gun”, uma
arma que libera até 50 mil volts e imobiliza temporariamente a vítima. “Será que a polícia tem
esse tipo de arma nos armários? Se tem, por que ela não foi usada no caso de Jean Charles?”, indagou a advogada Peirce. Antes disso, o comissário da polícia Ian Blair informara que, desde os atentados de 7 de julho – que mataram 56 pessoas em Londres –, houve 250 casos em que os agentes pensaram que poderiam estar lidando com homens-bomba e em sete ocasiões estiveram próximos de atirar. O episódio com Jean Charles foi o único em que isso acabou ocorrendo. Por fim, o tablóide The Sun disse que o policial que atirou no brasileiro recebeu uma folga remunerada e saiu de férias com a família. “Ele não deveria estar de férias. Ele deveria estar preso”, disse Patrícia Armani, uma das primas de Jean Charles de Menezes que vivem em Londres.

Ordem para matar – Segundo o jornal britânico Daily Mail, a determinação para atirar contra o brasileiro partiu da comandante Cressida Dick, 44 anos, uma das mais graduadas e respeitadas policiais da Scotland Yard. O jornal diz que, apesar de não estar claro se Jean Charles foi interpelado pelos policiais antes de ser executado, a polícia tem orientação de não fazer nenhuma abordagem a um suspeito de ser um homem-bomba. Os policiais disseram estranhar o fato de o brasileiro estar usando uma jaqueta num dia bastante quente. Mas essa versão foi desmentida pela família do morto. “Não existe isso de jaqueta”, disse Vivian Figueiredo, uma das primas do brasileiro. Ainda segundo o jornal, os policiais pediram instruções por rádio à sede da Scotland Yard e a comandante Cressida Dick, depois de consultar especialistas em táticas armadas, adotou os procedimentos da Operação Kratos. Apesar do apoio que recebeu de seus superiores, colegas dizem que a policial ficou completamente “arrasada”.

Mesmo com a comoção que provocou, o incidente que vitimou o eletricista brasileiro dificilmente trará mudanças significativas na orientação da polícia britânica na luta contra o terrorismo. “Todo país – como Israel, Rússia e Sri Lanka – que ponderou a questão desses suicidas que cometem atentados à bomba inevitavelmente chegou à conclusão de que uma política de atirar para matar se faz necessária”, diz Paul Wilkinson, do Centro de Estudos de Terrorismo e Violência Política da Universidade de Saint Andrews, Escócia. “A polícia deveria temer a reação de toda a comunidade civilizada. Mas não há nenhum sinal de que os políticos ou o público reagirão. Se a Al-Qaeda criou um clima em que uma pessoa comum pode levar oito balaços da polícia e a sociedade dá de ombros, então os terroristas já obtiveram uma vitória”, argumentou Tim Hames, articulista do jornal The Times.