Roberto Campos foi embora e, sabe-se lá de onde, conseguiu o que em seus 84 anos de vida parecia impossível: sua inteligência deixou saudosos a todos os que o idolatravam e os que o odiavam. Seus adversários mais ferrenhos perderam a fina ironia do melhor debatedor e o embate ideológico perdeu muito de seu vigor. Quem poderia, senão ele, atiçar a ira da esquerda com frases e argumentos tão cáusticos, zombeteiros, inteligentes e ultraliberais? Quem poderia, senão ele, levantar como um guindaste a média da inteligência da direita que o cercava e da qual ele se cercava?

Roberto Campos, ministro da ditadura, um dos 63 votos que derrubaram as Diretas-já em 1984, eleitor de Paulo Maluf no colégio eleitoral que escolheu Tancredo Neves como presidente da República, entrou para a História – apesar de tudo isso – como um dos mais ilustres economistas do País. A economista Maria da Conceição Tavares (PT), sua aluna na Faculdade de Economia da antiga Universidade do Brasil, em 1960, se engalfinhava com o ex-professor malufista no Congresso, onde ambos atuavam, em posições opostas, como deputados federais. Nunca sem deixar de respeitá-lo pela inteligência e coerência. Certa vez, quando o tempo esquentou no Congresso e a economista Maria da Conceição gritou “estou com o saco cheio desses monetaristas”, o economista, diplomata, deputado federal e senador provocou gargalhadas ao responder: “Mas, deputada, isso é uma impossibilidade biológica.”

Nunca lhe faltava o humor e muita ironia. “As reformas não conseguirão piorar nosso manicômio fiscal. Mas, como dizia um engraxate da Câmara, não há perigo de melhorar”, debochou sobre o processo da reforma fiscal, em 1999.

Bob Fields, a versão de seu nome em inglês feita pelo humorista Sérgio Porto, nasceu nos anos 60 por sua defesa fervorosa da participação do capital estrangeiro no País (ele mudou a lei de remessas de lucros para conceder vantagens aos investidores estrangeiros). Como Bob Fields, Roberto Campos fez miséria. Uma delas: aproveitando a ditadura, que calou os sindicatos, conseguiu reduzir a dívida pública a 1,1% do PIB em 1965, graças a um brutal achatamento dos salários. Como ninguém podia falar nada…

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O apelido o acompanharia pelo resto da vida. Chame-o de Bob Fields ou de Roberto Campos, não há como negar que o economista teve uma influência importante na história do Brasil. Como ministro do marechal Castelo Branco, o primeiro governo da ditadura, iniciado em 1964, ele definiu as linhas mestras da economia, criando as condições para a retomada do crescimento. Em sua gestão (1964-1967) nasceram o Banco Central, o Serpro, a Embratel, a Embratur, o Sistema Financeiro de Habitação, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, a caderneta de poupança, a correção monetária. O BNDE (sem “s” na época), que Campos presidiu, também saiu de sua cabeça em 1951, bem antes de ser ministro, quando integrava a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico.

Defensor de uma forte intervenção do governo na economia, criou várias estatais, uma combinação inusitada com o livre mercado. Anos depois, apoiou a política privatizante de Fernando Collor – mas não o perdoou pelos descalabros cometidos na Presidência: doente, numa maca, Roberto Campos viajou do Rio a Brasília para não faltar à sessão da Câmara dos Deputados em que foi votado o impeachment do presidente.

Forró na Rocinha – Como político, nunca foi popular, embora tenha mantido por 16 anos a vida parlamentar. É de 1998 uma das passagens mais engraçadas de sua vida política, contada na época de sua morte pelo ministro do Trabalho, Francisco Dornelles. Campos enfrentava enorme dificuldade para conquistar votos em 1998. Resolveu, então, baixar na favela da Rocinha, no Rio, para pedir apoio às 120 mil pessoas que vivem ali. Acabou quase no colo dos moradores, que gritavam seu nome, e ficou tão entusiasmado que, acredite se quiser, caiu no forró. Perdeu a eleição, mas não perdeu a ironia: “Sou um líder popular, ganhei no Irajá e na favela da Rocinha.”

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Com A lanterna na popa, livro lançado em 1994, Roberto Campos já tinha colocado os pés na trilha de, à sua maneira, “popularizar-se”. Escreveu suas memórias em dois volumes e virou best-seller – dentro e fora dos meios econômicos. Um milagre reservado a raros economistas. As histórias contadas em A lanterna são deliciosas. A do célebre economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946): “Keynes era o único a quem fora permitido levar a Brentton Woods sua mulher, a bailarina Lydia Lopokova. A piada corrente é que se tratava de um truque de Morgenthau, chefe da delegação americana. Após três semanas de fome sexual, os delegados assinariam qualquer documento. Como Keynes tinha fama de homossexual, é provável que Lydia não interferisse no celibato.” Sobre Che Guevara: “Era uma figura agradável, com roupa de combate, botas, uma boina preta, e fiel ao estilo castrista, compulsivo fumador de charutos. Revelou-se bom debatedor, familiarizado com a processualidade parlamentar.”

Sua escolha para a cadeira nº 21, deixada pelo dramaturgo Dias Gomes, provocou grandes conflitos. Alguns imortais, como Barbosa Lima Sobrinho (que morreu em 16 de julho de 2000) e Celso Furtado, se opuseram à sua eleição. A mulher de Dias Gomes, Bernadeth Lyzio, ameaçou transferir o corpo do marido do mausoléu da Academia. Campos, apesar da resistência, ganhou o fardão, que, com sua morte (em 9 de outubro, no Rio, provocada por um enfarte agudo do miocárdio), está sendo disputado por Paulo Coelho, Hélio Jaguaribe e o diplomata Mario Gibson Barbosa, ministro das Relações Exteriores no governo do ditador Emílio Garrastazu Médici, insinuando que vem mais um embate ideológico por aí. “As esquerdas queriam criar uma reserva de mercado para as vagas que surgissem na Academia”, disse ele na ocasião. Seu discurso de posse durou mais de uma hora e teve enorme repercussão. Fez mais desaforos aos adversários: defendeu o regime militar, criticou a ideologia da esquerda e desencadeou sua verve frasista como se fosse a última vez: “Como alvo de personalismos injuriosos, ganhei todos os campeonatos desta pátria amada, sofrendo patrulhamento e recebendo xingamentos tanto da esquerda radical como dos nacionalistas de direita.”

Seminarista – O amigo da ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, a dama-de-ferro, e seguidor do austríaco ultraliberal Friedrich von Hayek (1899-1992), ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1974, nasceu em Cuiabá (MT), em abril de 1917. Entrou para o seminário aos nove anos, de onde saiu aos 20, em 1937, para ser professor de latim, gramática, história e astronomia em uma escola no interior de São Paulo. Sua vida mudou de rumo no Rio, onde foi rejeitado para um emprego como escriturário no Ministério do Trabalho. Ele resolveu, então, prestar um concurso no Itamaraty. Passou em primeiro lugar, ganhou o posto de cônsul de terceira classe e, em 1942, foi nomeado adido comercial da Embaixada de Washington, onde descobriu a vocação para a economia.

Na Universidade de Columbia, em Nova York, fez seu doutorado. Foi ali que começou a surgir o economista que se destacou na política do Brasil como o mais ferrenho, inteligente e polêmico defensor do liberalismo econômico nos últimos 50 anos.