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 Quatro balas de uma rajada de submetralhadora nove milímetros destruíram o crânio. Outras seis, o tórax. Era noite de 28 de outubro de 1996. Dia do Funcionário Público. Na hora, a camiseta branca de Sílvio Carlos Luna Viana tingiu-se de vermelho. Ele era coordenador-geral de Administração Tributária da Secretaria de Fazenda de Alagoas. O corpo caiu no volante. No banco traseiro do Fiat Uno, um canário belga, na gaiola, sobreviveu à emboscada ao dono. Foi o guardião de uma pasta com ofícios cobrando uma dívida milionária de usineiros alagoanos. Quatro dias antes da morte, Viana entregara os ofícios na Nivaldo Jatobá Empreendimentos e na Laginha Industrial, a usina do presidente do PTB em Alagoas, deputado João Lyra, um dos homens mais ricos do País, pai da socialite Thereza Collor, fama de valentão. Milhares de cidadãos de Maceió foram ao cemitério lamentar a morte de Viana, tido como fiscal honesto e rigoroso. No enterro, sua irmã, a médica Silviane, fez um desabafo emocionando, convocando as pessoas de bem a saírem de Alagoas. “Este Estado é uma erva daninha que corrói as pessoas.”

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Uma década depois, Sílvio Viana é nome da avenida da orla marítima de Maceió e João Lyra está na frente nas pesquisas para ser governador de Alagoas. Na semana passada, ISTOÉ entrevistou um dos acusados pelo crime, o ex-soldado da Polícia Militar Garibalde Santos de Amorim. Ele cumpriu pena, em regime fechado, de oito anos pela morte de Viana – e fez uma acusação direta: “Quem mandou matar foi o deputado João Lyra.” Garibalde jura ser inocente. Atribui o crime a outros pistoleiros. Ele dispara mais uma afirmação bombástica: ao lado de outras três pessoas, recebeu dinheiro para, no curso do processo, inocentar Lyra em depoimento na Polícia Federal. A parte de Garibalde foi de R$ 48 mil, pagos em três pacotes de R$ 16 mil. O dinheiro passeou pelas contas do irmão do ex-soldado, Alberto Santos de Amorim, e da mãe, a dona-de-casa Genilda Santos de Amorim. Com uma parcela do dinheiro, Garibalde forrou os dentes com ouro. Com outra parte pagou cirurgia de ponte de safena no coração da mãe.

Num gesto até aqui guardado em segredo, apurado por ISTOÉ, o juiz da Vara de Execução Penal de Alagoas, Marcelo Tadeu Lemos de Oliveira, colheu um depoimento do ex-soldado Garibalde. Seu teor serviu de base a um dossiê sobre o crime que foi entregue no dia 7 de junho, em Brasília, à presidente do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie. O centro da peça jurídica é outra vez a acusação de que João Lyra foi o autor intelectual do crime. Para entregar a representação, o juiz se fez acompanhar de familiares do fiscal morto. Ellen Gracie se emocionou, chegando às lágrimas. “Não mataram meu irmão, mataram o Estado de Alagoas”, disse Silviane, irmã de Sílvio, durante o encontro. Na quarta-feira 28, a família do fiscal voltou a Brasília. Desta feita para ir ao procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza. De novo para pedir justiça. O ofício que encabeça o dossiê ao procurador-geral, a exemplo do documento entregue a Ellen Gracie, foi preparado pelo juiz Marcelo Tadeu. Ele é um juiz jovem, de 43 anos, e com tatuagem de uma cara de leão no braço esquerdo.

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É conhecido em Alagoas por tentar modernizar o Judiciário local. No presídio de segurança máxima Baldomero Cavalcante, muitos detentos o chamam de “pai”. Existe motivo. Marcelo Tadeu passa grande parte do seu período de trabalho dentro do presídio, conversando com os presos, resolvendo problemas. Lá não existe rebelião. A taxa de reincidência criminal caiu com a chegada do juiz. Ele lamenta a injustiça do sistema prisional da região. Em Alagoas, tem gente condenada por crime hediondo por carregar 40 gramas de maconha. No ofício que entregou à ministra Ellen, o juiz discorre sobre os três processos criminais instaurados para investigar a morte de Sílvio Viana. Nenhum dos três processos aponta a motivação do crime e muito menos aponta autores intelectuais. “Eles são resultado de uma escancarada aberração jurídica”, escreve o juiz. Ao STF e à Procuradoria da República, o juiz é enfático em denunciar João Lyra como um dos autores intelectuais do assassinato de Sílvio Viana.

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O depoimento do ex-soldado Garibalde é de máxima importância para a acusação porque ele foi, por mais de dois anos, o principal assessor do então tenente-coronel Manoel Francisco Cavalcante, apontado como o chefe da “gangue fardada de Alagoas”, espécie de esquadrão da morte a mando dos interessados em eliminar adversários. Cavalcante hoje está preso sob acusação da morte de Viana, entre outros crimes. Garibalde, depois de oito anos em regime fechado, saiu em novembro do presídio de Segurança Máxima Baldomero Cavalcante. Cumpriu em regime fechado os primeiros oito anos da condenação pela morte de Sílvio Viana e por outro crime. Segue a pena em regime aberto. Está foragido para não morrer em Alagoas. Além de acusar o usineiro Lyra de autoria intelectual do crime, ele também contou que o advogado Iran Nunes embolsou outros R$ 48 mil para intermediar o contato entre Lyra e ele próprio e seu ex-companheiro de presídio José Fernandes Costa, conhecido por Fernando Fidélis. Esse pistoleiro também recebeu, de acordo com o ex-soldado, R$ 48 mil para inocentar Lyra na PF. O candidato eleito a vereador Cristiano Matheus (PFL) recebeu R$ 6 mil, em três parcelas iguais, para também levar as orientações de Lyra ao advogado Nunes, sempre de acordo com a versão do ex-soldado.

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O ex-tenente-coronel Cavalcante, afirma Garibalde, ficou com a parte do leão: R$ 200 mil. O preso Fernando Fidélis não está mais no presídio para confirmar o pacto. Foi assassinado dentro do presídio no dia 28 de outubro de 2005, o Dia do Funcionário Público e aniversário da morte de Sílvio Viana. Isso foi interpretado pelos juízes de Maceió como um acinte. A mulher de Fidélis, Tânia Couto, foi à Procuradoria Geral de Justiça de Alagoas e confirmou que o marido embolsou o dinheiro. Ela gastou os R$ 48 mil em sua frustrada campanha para vereadora no município de Cajueiro. O irmão de Fidélis, Fabiano Fernandes Costa, confirmou na Justiça a história dos R$ 48 mil. O filho de Fidélis, José Fernandes Costa Filho, contou ter recebido o dinheiro das mãos do advogado Iran Nunes. “Esse dinheiro foi fornecido pelo deputado João Lyra para tirar o nome dele da morte de Sílvio Viana”, contou o filho de Fidélis ao procurador-geral de Justiça, Coaracy José da Fonseca. Ao todo, o usineiro gastou R$ 150 mil para pagar o silêncio. Silêncio dos inocentes? Garibalde diz que nem ele nem Fidélis atiraram em Viana.

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“O assassinato de Sílvio Viana é um caso emblemático da impunidade e da fragilidade das instituições do Estado”, disse a ISTOÉ o juiz Marcelo Tadeu. “O Garibalde é a última testemunha viva.” Garibalde afirma que os ex-soldados conhecidos como Fininho e Cigano, hoje presos por outros crimes no quartel da PM de Alagoas, foram os verdadeiros matadores do fiscal Sílvio Viana. Os dois outros pistoleiros responsáveis, os policiais Ferreirinha e Valter, foram assassinados. “Queima de arquivo”, crava Garibalde. Ele dá o nome de outro delegado que manda matar em Alagoas. “Quem praticava os crimes sob orientação do Cavalcante era a equipe do delegado Valdir de Carvalho.” Garibalde quer ir ele próprio a Brasília para contar também o que sabe sobre tráfico de armas em Alagoas, envolvendo as autoridades locais. Mas e o deputado João Lyra, tem mais crimes? “Tem”, diz Garibalde. Ele discorre sobre o crime do sargento da PM Marcos Antônio de Almeida Silva, em 1991. Antes de ser assassinado, o sargento confidenciou seu romance com Solange Pereira de Lyra, mulher de João Lyra. Este crime foi noticiado por ISTOÉ Senhor em 1991. A reportagem foi ao Tribunal de Justiça de Alagoas para encontrar os vestígios do crime. No sistema eletrônico do tribunal não consta o nome do sargento assassinado.