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Em entrevista à editora Solange Azevedo, o pesquisador de Segurança Pública Guaracy Mingardi comenta os excessos cometidos pelos policiais


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Guaracy Mingardi, pesquisador e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, comenta homicídios recentes cometidos pela polícia

 

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Sob a justificativa de conter a criminalidade, a polícia paulista mata cada vez mais. Relatos sobre abusos policiais e casos de inocentes assassinados por engano por PMs aumentaram de modo alarmante este ano, chocando a população e até as autoridades do Estado. Em 2009, a Polícia Militar matou 524 pessoas em supostos confrontos em São Paulo – 33,7% a mais do que em 2008. De janeiro a março de 2010, a letalidade saltou 40,8%, se comparada ao primeiro trimestre do ano passado. E apesar do banho de sangue não se verificou a alegada redução nos índices de criminalidade. Os delitos contra o patrimôniopermanecem em níveis elevados e os homicídios, que vinham em queda desde o início da década, voltaram a crescer.

Nas últimas semanas, histórias brutais de assassinatos cometidos por policiais militares fortaleceram a suspeita de que a tropa paulista está fora de controle. A desconfiança não veio apenas das tradicionais entidades preocupadas com direitos humanos. O próprio governador de São Paulo, Alberto Goldman (PSDB), se declarou “horrorizado” com a atuação da PM. Os casos que escandalizaram o País envolveram dois motoboys. Os rapazes, ambos com ficha limpa, foram torturados e assassinados por soldados fardados. Um na zona sul, outro na zona norte da capital. A fúria dos PMs foi desencadeada por motivos banais. Alexandre Menezes dos Santos, 25 anos, teria furado um bloqueio e andado mais 50 metros com sua moto até a porta de casa. Eduardo Luiz Pinheiro dos Santos, 30, foi acusado de desacatar um PM. “Estes casos mostram que falta preparo emocional e psicológico aos policiais”, diz o criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, ex-secretário da Segurança Pública de São Paulo. “Eles deveriam ter acompanhamento periódico e permanente, pois exercem uma atividade que exige autocontrole e equilíbrio muito fortes.”

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“Pensei em chamar o 190, mas era o
190 que estava lá”

Maria Aparecida Menezes, mãe do motoboy Alexandre

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Amigos do governador Alberto Goldman contam que ele cobrou explicações do secretário da Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, assim que soube do assassinato de Alexandre. “Precisamos saber o que está efetivamente ocorrendo em nossa polícia”, exigiu Goldman, segundo estes relatos. “Treinamos homens e mulheres para garantir a vida, e não para tirar a vida das pessoas.” Mais tarde, no Palácio dos Bandeirantes, Goldman considerou que o primeiro caso (o de Eduardo) poderia até ser tratado como um lamentável incidente. “Mas 30 dias depois me vejo diante de um fato semelhante”, disse o governador. “Isso já mostra o despreparo dos PMs. E se o comando não está funcionando é preciso trocá-lo.” Goldman, então, exigiu o afastamento de dois oficiais responsáveis pelo 22º Batalhão, unidade onde os policiais que mataram Alexandre estavam lotados.

Entre 2008 e 2009, quando as mortes em confrontos começaram a aumentar demais, uma “luz vermelha deveria ter sido acesa”, segundo a socióloga Julita Lemgruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes e ex-ouvidora da polícia do Rio de Janeiro. “Já era um indicativo de que algo estava errado”, diz ela. Embora a explosão de truculência seja preocupante, especialistas afirmam que a Polícia Militar não está fora de controle, mas sim sob um equivocado comando das autoridades responsáveis por ela. “Não acredito que exista uma ordem da Secretaria da Segurança para matar, mas há um sério e claro problema de comunicação no comando”, diz o advogado Denis Miz­ne, diretor-executivo do Instituto Sou da Paz. “Como a postura pública das autoridades tem sido a de justificar as ações violentas, os policiais que estão nas ruas, sob altíssimo stress, ficam mais propensos a excessos e a apertar o gatilho”, explica Mizne.

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“Precisamos saber o que está ocorrendo
em nossa polícia”

Alberto Goldman, governador de São Paulo

Fardados, armados e em grupo, eles se sentem poderosos e podem também se considerar livres para agir à margem das leis. Alexandre Menezes dos Santos teve o azar de cruzar o caminho de um bando de PMs descontrolados. O atestado de óbito revela que ele morreu em decorrência de asfixia mecânica, traumatismo craniano e hemorragia interna. Foi assassinado diante da mãe. Ao visitar a sepultura do filho, como tem feito todos os dias, a vendedora Maria Aparecida Menezes, 43 anos, conversou longamente, como se ele pudesse ouvi-la: “Perdão, meu filho.

Eu deveria ter pulado no pescoço deles. Eu não deveria ter largado você para o mundo. E agora, o que vou fazer com o seu irmão, que está crescendo também? Acho que mamãe vai vender a casa. Não dá para viver com essa lembrança.” O assassinato de Alexandre ocorreu na véspera do Dia das Mães. Maria Aparecida acordou com o som de sirenes no portão. Correu para checar o que havia do lado de fora quando ouviu o primogênito pedir socorro. “Abri a janela, vi o meu filho caído e quatro policiais batendo nele”, conta.

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Casado e pai de um garoto de 3 anos, Alexandre era motoboy de uma pizzaria. Foi abordado pouco depois de largar o serviço. “Eu gritava que aquele era meu filho, que ele morava ali e que a moto era dele”, lembra Maria Aparecida. A moto, comprada em fevereiro, estava sem placa porque Alexandre custara a juntar dinheiro para regularizar a documentação. “Eu gritava ‘socorro, estão matando meu filho’ e os policiais diziam que, se eu não parasse, iam me prender também”, lembra. “Um deles chegou a me perguntar: ‘está pulando por quê? Parece até um canguru.’” Alexandre levou tapas, socos e pontapés durante 30 minutos. Os policiais bateram a cabeça dele repetidamente contra a calçada. “Eu via a saliva escorrendo da boca, percebi que ele estava morrendo”, conta a mãe.

Embora os PMs homicidas estejam no xadrez, as ações do Estado foram consideradas insuficientes por especialistas. “O porta-voz da PM disse que um dos motoboys não foi torturado e que os envolvidos já estavam presos. Fica parecendo que torturar não pode. Mas que só matar pode”, indigna-se Denis Mizne. “O governador ainda precisa dar um sinal claro do tipo de tolerância dele. Não há desculpa para um crescimento de 40% nas mortes em confrontos”, avalia o coronel da reserva José Vicente da Silva Filho, secretário Nacional da Segurança Pública na gestão FHC.

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“Meu filho tinha sido educado
para não ter medo da polícia”
Elza Pinheiro dos Santos, mãe de Eduardo

De acordo com Silva Filho, estudos internacionais mostram que um dos indícios da alta letalidade é a proporção de baixas dos dois lados – para cada policial assassinado em confronto seria “aceitável” que dez bandidos perdessem a vida. No ano passado, o índice em São Paulo foi de um para 33. O triplo do tolerável (leia gráfico na página 40). “No Brasil, os criminosos partem mais para o confronto. No Exterior é diferente, eles respeitam mais as leis”, alega o coronel Álvaro Batista Camilo, comandante-geral da PM. “Em 70% dos enfrentamentos, os criminosos saem ilesos.”

A tese da “força do discurso”, defendida por especialistas, tem respaldo estatístico. No início da década de 90, durante o mandato do governador Luiz Antônio Fleury Filho, a PM chegou a matar quase 1.400 civis num único ano. Fleury adotava um discurso duro, de enfrentamento. A gestão dele ficou marcada pela morte de 111 presos no Carandiru. Quando Mario Covas assumiu, em 1995, a situação começou a melhorar. O recorde dos tempos de Fleury só foi batido em 2003, na gestão de Geraldo Alckmin, quando Saulo de Castro Abreu Filho era o secretário da Segurança. “Saulo declarou publicamente que, quando a polícia mata, ela sabe o que está fazendo”, lembra Denis Mizne. O coronel Silva Filho afirma que os números da era Saulo só começaram a baixar quando o então comandante-geral da PM, o coronel Elizeu Eclair, determinou que os policiais que tivessem três mortes ou mais no currículo fossem tirados das ruas. No Rio, a PM passou a apertar menos o gatilho quando o governador Sérgio Cabral (PMDB) diminuiu o tom belicoso em seus discursos. “Em vez de estimular o confronto, ele começou a falar em diálogo e pacificação”, afirma Julita Lemgruber. “A letalidade ainda é muito alta, mas diminuiu 8% entre 2008 e 2009.”


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“Não temos dúvida de que
ele (Eduardo) sofreu tortura”

Antonio Ferreira Pinto, secretário da Segurança
Pública de São Paulo

A impunidade também provoca uma diminuição das denúncias. Muitos dos que se dispunham a dar informações para melhorar o policiamento recuam. Vítimas ficam mais inseguras para denunciar porque desconfiam do Estado. É o que vem acontecendo em São Paulo. Os avanços conquistados desde 1997 – quando imagens de PMs torturando moradores e executando o conferente Mário Josino, na Favela Naval, na cidade de Diadema, foram veiculadas em rede nacional – caem por terra.

“Não podemos ter uma polícia que mata primeiro para perguntar depois”, diz o ouvidor da Polícia do Estado, Luiz Gonzaga Dantas. Os soldados que torturaram e mataram Eduardo dentro de um batalhão da zona norte usaram de um estratagema amplamente difundido durante a ditadura militar. “Me contaram que um monstro de farda saiu da sala mostrando para o comandante o cassetete que tinha quebrado de tanto bater no meu filho”, relata a pedagoga Elza Pinheiro dos Santos, 62 anos, mãe de Eduardo, 30 anos. O filho dela foi levado ao batalhão porque teria desacatado um PM. “A história desse rapaz é o exemplo de uma prática comum em São Paulo”, afirma o cientista social Guaracy Mingardi, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Queriam dar um corretivo nele. Em outros casos, pessoas são levadas porque a polícia quer tirar informações e o jeito mais fácil de conseguir isso é torturando.” Outra razão apontada para explicar a escalada da violência fardada é a proteção típica da corporação militar. “Em geral, as mortes são apuradas por policiais do mesmo batalhão. É colega investigando colega”, diz Mingardi.

A mãe de Alexandre demonstra, com emoção, o sentimento de desamparo da população quando constata a brutalidade de quem é pago para defendê-la: “Eu queria ligar para o 190, mas era o 190 que estava lá, fazendo aquilo com o meu filho.”
Colaboraram: Alan Rodrigues e Luiza Villaméa

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Colaboraram: Alan Rodrigues e Luiza Villaméa

 


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