Numa sociedade que muda velozmente, é natural que a família, o mais forte pilar da existência humana, passe por muitas transformações. Uma das mais recentes descobertas de especialistas no tema é que irmãos têm a mais profunda e decisiva influência na formação da personalidade e na escolha de profissões uns dos outros. Os pais trabalham fora e ficam pouco tempo com os filhos. As empregadas e babás obedecem ordens e não entram na hierarquia familiar. As creches são impessoais. O que sobra? Os irmãos, as únicas pessoas que estão permanentemente ao nosso lado na infância e na adolescência e nos acompanham, de fato, por toda a vida – já que os pais, seguindo a lei natural da vida, morrem antes e maridos e mulheres chegam depois.

São os irmãos que servem de espelho, são os modelos que pretendemos imitar ou rejeitar. São eles que despertam nossos primeiros sentimentos. Com eles dividimos as primeiras emoções e descobertas. Eles são nossos primeiros rivais, na disputa pelo afeto e a atenção dos pais ou simplesmente na disputa de um brinquedo. Eles são nossos primeiros amigos, os primeiros a nos proteger e a ensinar os atalhos da vida.

Relação afina sentimentos como solidariedade e ciúme
Mesmo os filhos únicos buscam compensar artificialmente essa referência familiar que não têm. estudos mostram que, cada vez mais, a influência vertical – de pais para filhos – cede espaço na sociedade moderna para a horizontal, de irmão para irmão. um dos pesquisadores do assunto, o americano frank sulloway, do instituto de tecnologia de massachusetts, afirma que a ordem de nascimento dos irmãos pode modificar a personalidade. o primogênito seria mais conservador e obediente, ao contrário do caçula, mais paparicado e relaxado. o primeiro influencia muito a formação do menor. os do meio, menos cobrados e alvos de atenção menor, acabam encontrando mais espaço para exercer a liberdade e se relacionar de forma mais leve e carinhosa com os irmãos.

Psicólogo clínico licenciado na Flórida, nos Estados Unidos, o paulista Mauro Godoy, 46 anos, compartilha das idéias do americano. “O mundo da criança é o da família, que é referência para a vida. Há influência entre irmãos: o mais velho, por exemplo, acaba incorporando a postura de ser superior que o caçula lhe atribui”, diz. Ou seja, a influência tem mão dupla. Ele frisa que o fato de os irmãos assumirem mais espaço na definição da personalidade não significa que os pais deixaram de ser importantes, em especial a mãe. “A relação mais forte é com a mãe. Ela é que ampara e ensina a lidar com a estrutura emocional”, ressalta. Mas é a convivência contínua com os irmãos que marca e desperta as mais caras emoções. É a relação entre eles que afina instrumentos como solidariedade, cumplicidade, inveja, ciúme ou competição, no primeiro grande ensaio da vida em grupo, dos conflitos na escola às frustrações profissionais ou amorosas. A mitologia está repleta de narrativas drásticas vividas por descendentes de um mesmo pai, como é o caso da lenda de Rômulo e Remo, irmãos gêmeos criados por uma loba. O primeiro acaba matando o segundo e torna-se o rei de Roma. Em conhecido episódio bíblico, Caim assassina seu irmão Abel tomado de ciúme por se sentir rejeitado por Deus. Felizmente, nos dias de hoje, os complexos e desavenças são resolvidos de forma mais amena.

“O esboço da sociedade está centrado na irmandade”
O que as novas descobertas e estudos mostram é que, atualmente, situações como as simbolizadas nos episódios de Rômulo e Remo e de Caim e Abel são cada vez mais raras. O relacionamento melhor entre irmãos, num mundo que pelas circunstâncias os empurra para a cumplicidade, reduz esses riscos. O caso da família Gracie é exemplar. Oriundo de um núcleo familiar absolutamente fora do atual contexto, Royler Gracie, 40 anos, tem oito irmãos biológicos e todos, sem exceção, se dedicam à mesma atividade: o jiu-jítsu. A influência entre eles, para Royler, é inquestionável: “Lembro que eu tinha quatro anos e via meus irmãos mais velhos de quimono. Claro que eu também queria ter meu quimono”, diz ele, campeão mundial do esporte. Mas não foi só o gosto pela atividade esportiva que um passou para o outro. Também há um padrão de comportamento da família Gracie – além de Royler, moram no Brasil o irmão Rolker, 41 anos, e o patriarca, Hélio, 94, no Rio. Os demais exercem a atividade fora do País. “Nosso lema é ‘drogas, tô fora’”, diz ele. “Temos uma atitude muito parecida em relação à vida. Isso começou com meu pai e foi passado dos irmãos mais velhos para os mais novos”, completa.

Há estudos que ampliam – e muito – o poder da ascendência fraterna. No mês passado, pesquisadores da Brock University, em St. Catharines, no Canadá, concluíram que ter um irmão mais velho aumenta as chances de um homem ser gay. Se este irmão for homossexual, a possibilidade de o mais novo repetir a opção aumenta. A pesquisa foi realizada com 944 homens. Já pediatras do St. George’s Hospital, da Inglaterra, afirmaram que o número de irmãos pode influenciar até mesmo a escolha da posição de um jogador de futebol. O estudo garante que os goleiros e os zagueiros têm no máximo um irmão ou irmã, enquanto os atacantes provêm de famílias numerosas. Os últimos aprenderam dentro de casa a correr atrás e disputar a bola. Ronaldinho Gaúcho – atacante – tem oito irmãos.

“Adoecimento psicológico das crianças”
“Durante muito tempo a psicanálise
pôs somente a mãe e o pai na berlinda, mas é na irmandade que estão centra
das a rivalidade e a solidariedade, o esboço da sociedade”, diz a psicanalista Ana Maria Iencarelli, 56 anos, pós-graduada pela universidade francesa Sorbonne. A revisão por ela proposta encontra um cenário bem mais complexo do que o núcleo familiar dos tempos do patriarca Sigmund Freud. “Na família de hoje, a figura paterna não é necessariamente o pai de todas as crianças. Isso muda os padrões, abre uma nova experiência afetiva, mais forte ainda, entre os irmãos”, exemplifica.

Não é só. A fragilização da figura paterna e a ausência da mãe moderna podem agravar o que Ana Maria chama de “adoecimento psicológico das crianças”, que passam a contar só com o irmão – isso quando não é filho único. “Com menos figuras adultas e estruturadas por perto, a instabilidade afetiva aumenta e a importância do irmão cresce.” O espaço aberto pela ausência dos pais reforça o poder do irmão mais velho sobre o mais novo, especialmente quando a diferença de idade supera os três anos. A substituição tem suas vantagens, como a proximidade e a facilidade no diálogo pelo fato de pertencerem à mesma geração. Mas também carrega alguns riscos. É um dos alertas do psiquiatra e psicoterapeuta Alfredo de Castro Neves, 62 anos, duas vezes presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil. Exatamente por dominar a linguagem do caçula, o primogênito pode ser mais autoritário do que o pai. “O mais novo pode ficar sufocado pela pressão de um mais velho repressor, reprimir experiências e se sentir impotente.” Quando isso não ocorre, o resultado geralmente é bom. “A capacidade de falar a mesma língua e ter a leitura parecida dos eventos fortalece o discurso do irmão mais velho. Já a orientação do pai, com referenciais antigos, fica mais fraca”, compara o terapeuta.

• Criança deve se relacionar com iguais, não com adultos
Independentemente do formato da família, tradicional ou moderno, não há dúvida de que a relação entre irmãos cria referências duradouras. “Os pactos entre eles ensinam a honrar acordos, trocar, dosar rivalidade com solidariedade”, descreve a psicanalista Ana Maria. Os laços de parceria também tendem a ser sérios. Os irmãos cariocas Tomaz, 17 anos, e Bruna, 20, ambos com sobrenome Costa Praça, não têm dúvidas disso. “A nossa cumplicidade é absurda. Temos muito mais afinidade entre nós do que com nossos pais”, sentencia ele. “Tomaz exerce muito mais influência sobre mim”, diz ela. Entre os segredos que ela repassou para o irmão está a elegância na hora de abordar as garotas nas boates e festas que freqüentam juntos. “Eu o convenci a não falar com as mulheres como ele não gostaria que falassem comigo ou com nossa mãe.” A coesão da dupla reduz a capacidade dos pais, separados, de vigiar e punir. As diferenças influenciam também: se ela é “consumista” e ele é “afobado”, de acordo com as descrições, cada qual aprende com o outro a evitar o que considera defeito.

A psicanalista infantil Ana Olmos reconhece a força da influência fraterna, mas não a isola do contexto familiar. “Os irmãos são importantíssimos, mas nunca pensei num corte no qual são uma influência separada dos pais”, explica. A especialista ressalta que irmãos ensinam-se mutuamente a dividir carinho, lidar com as emoções, o ciúme, “tudo o que se precisa treinar para enfrentar a vida, aprender a negociar e enfrentar conflitos”, como diz. “A criança deve se relacionar com iguais e não com adultos. Ter um irmão vai fazer com que ela escale alguns degraus do desenvolvimento emocional.” Por isso, ela chega a contra-indicar que os pais tenham filhos únicos. O psicólogo Godoy, porém, acredita que estes têm conseguido compensar a falta dessa referência. “O filho único não é mais um coitado, uma pessoa frágil. Ele acaba por ‘adotar’ um irmão no colégio ou na praça mais próxima”, analisa. O especialista acredita que essa estratégia é facilitada pelo grande número de filhos únicos que existem atualmente. E que, numa amizade fraternal, se aprimoram mutuamente.

Quando a família tem três filhos, os pactos são diferentes. Os irmãos Handerson Luiz Brocchi, 28 anos, Wilson Roberto, 29, e Emerson, 18, dividem o mesmo quarto de 16 metros quadrados na casa dos pais, em Tatuapé, São Paulo. O porta-voz do trio nessa entrevista foi Handerson, o do meio. Segundo ele, o primogênito Wilson, também chamado de Nenê, é a grande referência. “Ele nos apóia em tudo, dá conselhos nos namoros, nas amizades. Ou pega no pé, como está fazendo atualmente com Emerson (o caçula) que gosta de ficar no Orkut o dia inteiro.” Ratificando as afirmações dos especialistas, Nenê é sereno e responsável. “Recentemente eu briguei com meu pai e ele me chamou para dar conselhos.” Handerson vai abandonar os irmãos para casar, em outubro. Mas garante que, se não tivesse motivo tão forte, continuaria com os dois.

Nem sempre é o mais velho que influencia o caráter do mais novo. É menos comum, mas pode acontecer o contrário, especialmente quando o pai ou a mãe sobrecarregam o primogênito com exigências e inseguranças típicas de marinheiros de primeira viagem. O filho mais velho se torna alvo de descargas emocionais e o caçula tende a compreender o fenômeno, a se solidarizar e a fazer tudo para proteger o irmão. “O mais novo se torna amigo, vira um modelo de virtude para o mais velho, que passa a admirá-lo”, explica Ana Maria.

• Irmão limita exageros para o filho que era único
É um pouco do que observa a paulistana Adriane Silva Valença, 37 anos, que está grávida e é mãe de Gabriel, sete, e Thomás, nove. Como é mais “descolado”, segundo ela, o caçula Gabriel é quem introduz Thomás, mais retraído, nas rodinhas de amigos. E, mantendo a sina do irmão mais velho, Thomás, por sua vez, protege o irmão. Quando vai à lanchonete da escola, reserva R$ 1 dos R$ 5 que a mãe dá a cada um para reforçar o lanche do irmão mais novo, mais comilão e que precisa crescer. O presidente do Instituto da Família, Leonardo Posternak, resume a questão: “A função do irmão é a de chegar para limitar e até cortar exageros e privilégios do filho que era único.” Mas quando um irmão nasce, acaba com a pseudo-estabilidade do mais velho – que raramente aceita impunemente esta interferência. “Virão transtornos transitórios, mas também altíssimas doses de amizade e de agressão. É normal que um dos irmãos se sinta intranqüilo. Ciúme, nesses casos, é como gripe, não tem como não pegar. Mas passa.” No rico universo dos relacionamentos entre irmãos, há espaço para muitas questões laterais. A condição peculiar do filho do meio é uma delas. Depois da sociedade patriarcal, em que os casais tinham muitos filhos, desembocamos na estrutura contemporânea, em que é comum famílias com um ou dois descendentes no máximo. Para o psicólogo Mauro Godoy, esse novo modelo vai provocar mudanças: “Uma delas é praticamente a extinção do filho do meio.” Uma pena, pois levantamentos americanos revelam que 40% de dirigentes de empresas são filhos do meio. De qualquer maneira, com um, dois ou vários filhos na família, há leis eternas nesse relacionamento: irmãos sempre serão referência uns dos outros.