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Especial
A energia da natureza
Como os recursos naturais estão sendo utilizados, na prática, como fonte energética e por que o século XXI precisa disso

Suzane Frutuoso e Verônica Mambrini
 

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Durante décadas, o uso da energia renovável era uma ótima idéia que parecia pertencer a um futuro muito distante. A boa notícia é que esse sonho já virou realidade no mundo todo.

Em São Paulo, a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU) colocará nas ruas da capital paulista o primeiro ônibus movido a hidrogênio do País, em março do ano que vem. O veículo faz parte de um projeto de R$ 38,5 milhões, que inclui a montagem de mais três. "Em dez anos, teremos uma frota mista", diz José Ignácio Sequeira de Almeida, presidente da EMTU.

i82016.jpgNo continente europeu, Portugal inaugurou em setembro o Parque de Ondas de Aguçadouro, em Povoa de Varzim. É a primeira estação de força maremotriz – que usa a energia das ondas do mar – para consumo comercial do mundo, num investimento de US$ 12,5 milhões. Nos Estados Unidos, no mês passado, as cidades de São Francisco, Oakland e San Jose, na Califórnia, anunciaram investimentos de US$ 1 bilhão para que os carros elétricos sejam maioria na frota até 2012. Tel-Aviv, em Israel, espera colocar nas ruas centenas de veículos movidos a eletricidade já em 2009. Para funcionar, postos de recarga elétrica estão sendo construídos – neles, o dono do carro recarrega o veículo por um sistema simples de fio e tomada.

i82019.jpgA preocupação com meios de transporte sustentáveis não se restringe aos elétricos. O Solartaxi, o primeiro veículo solar que viajou ao redor do mundo, chegou em 4 de dezembro à Polônia, onde foi realizada uma conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a mudança climática. O veículo percorreu, a partir de Lucerna (Suíça), 52 mil quilômetros e 38 países durante mais de um ano para chamar a atenção sobre os perigos do aquecimento global. "A iniciativa deveria reavivar a esperança e o entusiasmo pela vida, ser um exemplo para resistir à resignação e promover a reflexão sobre o futuro de nosso planeta", afirma o professor suíço Louis Palmer, criador do Solartaxi.

i82022.jpgExemplo brasileiro
Em maior ou menor grau, todos os países estão desenvolvendo projetos com alternativas limpas – as energias renováveis e os biocombustíveis (leia quadro nas págs. 84 e 85). A média mundial de uso de energia renovável é de 13%. No Brasil, essa porcentagem chega a 46% – o que faz do País um exemplo para o planeta. Em seu discurso na abertura do encontro da ONU sobre mudanças climáticas em Poznan, na Polônia, na quinta-feira 11, o secretário- geral da entidade, Ban Kimoon, citou o País como exemplo a ser seguido. "O Brasil construiu uma das economias mais verdes do mundo, criando milhões de empregos neste processo", disse. Belo Horizonte, em Minas Gerais, por exemplo, é referência mundial quando se trata de conscientização ambiental. Cerca de mil prédios, entre residências, hotéis e hospitais, utilizam a energia solar para aquecer a água. Leis na cidade de São Paulo e no Estado do Rio de Janeiro também determinam que as construtoras criem mecanismos para aproveitar a luz solar e usem materiais sustentáveis nas novas edificações.

O mundo resolveu investir na energia verde não por modismo, mas por necessidade. O século XX foi dos combustíveis fósseis, como petróleo e carvão, mas essas são fontes de energia finitas. Levando em conta o que se conhece hoje, a previsão é de que a reserva mundial de petróleo seja suficiente para mais 40 anos. Além disso, são energias poluentes. "Elas têm como conseqüência as emissões de gases que causam o aquecimento global", diz o engenheiro Hélio Mattar, presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente. Por isso, o século XXI será das energias limpas.

Vaticano ecológico
Além da iniciativa pioneira na construção da revolucionária estação maremotriz, que iluminará seis mil casas, Portugal tem 40% de sua produção energética proveniente de fontes renováveis, como centrais solares e estações eólicas. A Europa também está bastante evoluída no quesito transportes. O programa Clean Urban Transport for Europe (Cute) está testando a primeira geração de ônibus híbridos, como são chamados os veículos com célula combustível para hidrogênio. Eles rodam em cidades como Hamburgo (Alemanha), Londres, Barcelona (Espanha), Porto (Portugal) e Amsterdã (Holanda).

Uma das iniciativas mais ambiciosas em andamento no mundo é a Lei do Clima, de Londres (Inglaterra), divulgada no mês passado. A prefeitura local anunciou que pretende reduzir as emissões de carbono em 60% até 2025, estimular o uso de energia eólica e solar em edifícios públicos, empresas e residências, além de colocar nas ruas dez mil carros elétricos, com emissão zero de carbono. O exemplo londrino é apenas uma parte do que o Reino Unido vem chamando de Green New Deal, uma versão verde do New Deal – programa econômico que tirou os Estados Unidos da Grande Depressão na década de 1930. A idéia é que, em 2050, 80% dos gases responsáveis pelo aquecimento global liberados por combustíveis fósseis no transporte e na geração de energia elétrica sejam eliminados. Ao mesmo tempo, espera-se criar milhares de empregos nesta nova economia, num momento de crise financeira mundial.

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A Alemanha foi quem primeiro percebeu a oportunidade que unia meio ambiente e economia. Lá o governo concede incentivos fiscais às pessoas que instalam energia solar em casa. O país também é referência em usinas de painéis solares e responde por um enorme programa de energia eólica. O economista indiano Pavan Sukhdev, do Deutsche Bank, autor de um respeitado estudo sobre ecossistemas, garante que milhares de empregos podem ser criados na esteira da onda ecológica. "Não há dúvida de que as indústrias tradicionais, como as de aço ou automóvel, não conseguem mais prover empregos suficientes", afirma.

Espera-se que 300 mil novas vagas de trabalho sejam abertas, movidas por este segmento na Alemanha.

Na França, o foco principal para combater o desgaste ambiental está na construção civil. Prédios e casas serão reformados para melhorar a calefação e trocar o sistema de iluminação, e, com isso, aproveitar a luz natural e diminuir o consumo. Até o Vaticano decidiu agir em prol do meio ambiente. No mês passado, a Santa Sé ativou um sistema de energia solar em vários de seus edifícios. O Salão Nervi, onde os papas realizam as audiências gerais e que comporta dez mil pessoas, teve seu teto de cinco mil metros quadrados coberto com 2,4 mil painéis fotovoltaicos (que transformam a luz do sol em eletricidade). Esses painéis produzirão 300 quilowatts/hora de energia limpa por ano. Isso acarretará uma economia de 80 toneladas anuais de petróleo. O gesto está em consonância com a declaração do papa Bento XVI no ano passado. Segundo ele, a raça humana precisa "ouvir a voz da Terra ou então arriscar a destruição do planeta". A intenção é que 20% do gasto com energia do Vaticano venha de fontes renováveis até 2020.

i82033.jpgProjeto Obama
O Japão é um dos maiores exemplos de eficiência energética. Desde os anos 70, com equipamentos nas fábricas que evitam o desperdício e campanhas de conscientização para a população utilizar a eletricidade de forma consciente, os japoneses fizeram o Produto Interno Bruto (PIB) crescer sem aumentar o consumo de energia elétrica. "Eles provaram ao mundo que isso era possível", afirma o físico Délcio Rodrigues, pesquisador da ONG Vitae Civilis, que trabalha com desenvolvimento sustentável. A China também está acelerada na busca por alternativas ecologicamente corretas.

O físico Shi Zhengrong, fundador da Suntech, empresa líder mundial na produção de painéis fotovoltaicos, tornou-se um dos cinco homens mais ricos do país por causa de seu negócio verde. "A energia solar se encontra em um estágio parecido com o da telefonia celular de uma década atrás", afirma Zhengrong, otimista. Há oito anos, um megawatt custava US$ 20.

Hoje, US$ 4. As vendas da Suntech, que em 2003 foram de US$ 14 milhões, chegaram a US$ 1,85 bilhão só neste ano. A China anunciou que pretende ter, até 2020, 100 mil megawatts de capacidade instalada somente com energia eólica – esse montante representa o que o Brasil gera de energia elétrica com todas as suas fontes.

O governo dos Estados Unidos, país considerado um dos maiores poluidores do mundo, a ponto de se recusar a assinar o Protocolo de Kyoto (documento que determina a redução dos gases que provocam o efeito estufa e pioram o buraco na camada de ozônio), também está, pouco a pouco, se rendendo às evidências. O presidente eleito, Barack Obama, promete investir US$ 150 bilhões para desenvolver a indústria verde no país e criar cinco milhões de empregos com ela. Em seu plano de governo, ele diz que pretende colocar um milhão de carros híbridos nas ruas até 2015 e garantir que, até 2025, 25% da eletricidade consumida no país venha de fontes renváveis. O prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, pediu a especialistas estudos que mostrem a viabilidade de espalhar turbinas eólicas por diversos pontos da cidade – o que seria capaz de gerar 10% da eletricidade de que a metrópole precisa em dez anos.

No Texas, o magnata do petróleo T Boone Pickens está construindo o que poderá se tornar a maior usina eólica do mundo, com 2.700 turbinas. Mas ele deixa claro que a iniciativa não é simples consciência ecológica: "Meu negócio é ganhar dinheiro. E acho que isso será muito rentável daqui para a frente."

As energias renováveis ainda são até três vezes mais caras do que as convencionais. A diferença cai a cada ano, mas é difícil dizer em quanto tempo os custos serão realmente competitivos.

i82035.jpg"Depende do grau de esforço para o desenvolvimento tecnológico e das políticas de incentivo para fontes renováveis", diz Luis Laranja, da ONG WWF. Mesmo assim, as perspectivas são excelentes, garantem os especialistas. Vários países já iniciaram projetos grandiosos para diminuir as emissões de gás carbônico – o mais emitido entre os responsáveis pelo efeito estufa – em até 50% até 2030. Essa é a média mundial recomendada pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão formado por 130 nações que regulamentam ações para minimizar o impacto do homem sobre o meio ambiente.

Cumprindo sua parte de forma eficiente, os projetos e investimentos brasileiros em energias limpas não param de crescer. O Brasil tem 19 usinas que usam a força dos ventos em funcionamento, outras 20 em construção e 51 aprovadas cujas obras ainda não foram iniciadas, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O Rio Grande do Sul tem o parque eólico mais avançado da América Latina. Tem 75 turbinas com capacidade para garantir o consumo de 650 mil pessoas. Até 2010, R$ 44 bilhões serão investidos em biocombustíveis, segundo dados do Ministério de Minas e Energia. O Programa Brasileiro de Álcool (PróAlcool), criado na década de 70 como alternativa ao petróleo, hoje se destaca no cenário internacional com o etanol.

O País tem uma vantagem natural – o patrimônio ambiental, com a floresta amazônica à frente, e um saldo positivo de US$ 544 bilhões entre crescimento da economia e conservação de seus recursos naturais até 2050.

É o que revela o estudo Balanço das Nações: uma Reflexão sob o Cenário das Mudanças Climáticas, da Universidade de São Paulo (USP), apresentado em outubro no evento Amazônia – Dilemas e Oportunidades, promovido pela Câmara Americana de Comércio, em São Paulo. "O valor diz respeito ao excedente de créditos de carbono em relação ao que se polui. Isso se deve às florestas brasileiras", diz José Roberto Kassai, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP e coordenador da pesquisa. Significa que, se o Brasil fosse uma empresa, estaria no azul – e com folga.

Absorção de carbono

i82032.jpgCom base na equação da contabilidade aplicada pelas indústrias (ativo menos passivo é igual a patrimônio líquido), foi desenvolvido um modelo para mensurar a relação entre a expansão das atividades econômicas e a preservação dos recursos naturais em sete países: Brasil, Rússia, Índia, China, Estados Unidos, Alemanha e Japão até 2050. De acordo com o estudo da USP, somente Brasil e Rússia terão superávit dentro de 50 anos – as florestas russas de tundra têm capacidade de absorção de carbono ainda maior que a da Amazônia. Entre os critérios para chegar a essa conclusão foram levados em conta dados como preservação, desmatamento, uso de novas tecnologias e o cumprimento do Protocolo de Kyoto.

Espalhados pelos quatro cantos do mundo, projetos inovadores utilizam de forma inteligente os recursos naturais, como sol, vento e mar, para reescrever a história do uso da energia no planeta. Mais do que uma postura ecologicamente correta ou um ideal sustentável, é uma necessidade dos dias de hoje. E uma realidade que bate à porta de nossas casas, como observamos nos exemplos de sucesso descritos nesta reportagem. A energia verde está sendo utilizada na prática porque o século XXI precisa dela.