Parecia um seqüestro relâmpago. Era meia-noite de sábado, 4 de agosto de 2007, quando dois bicampeões mundiais de boxe, os cubanos Erislandy Lara, 24 anos, e Guillermo Rigondeaux, 26, foram embarcados às escondidas, em um hangar lateral do Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Entraram em um jato executivo privado, um Falcon 900, prefixo YV-2053, de 14 poltronas. O avião pertence a uma empresa espanhola, Gestair. Mas a aeronave, registrada na Venezuela, fica estacionada em Caracas, onde presta serviços especiais para o presidente Hugo Chávez. Naquele vôo estavam dez pessoas: o comandante do jato, o venezuelano Jorge Machado Mujica, quatro tripulantes e três agentes cubanos, além dos boxeadores. Contudo, o que houve de mais nebuloso foram os personagens que protagonizaram aquela operação na calada da noite. Uma delas é uma autoridade brasileira. Chamase José Hilário Medeiros. Chegou ao PT pelas mãos do ex-ministro José Dirceu, foi segurança pessoal do presidente Lula e hoje chefia o setor de inteligência da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Foi Medeiros quem comandou a equipe que saiu à caça dos boxeadores e coordenou a operação burocrática para legalizar a entrega sumária dos jovens à ditadura de Fidel Castro. O outro personagem até aqui misterioso é cubano. Chama-se Tomás Issac Mendez Parra. Oficialmente, é um dos cônsules de Cuba em São Paulo. Mas uma autoridade brasileira garante que Parra seria da inteligência cubana. Há um terceiro personagem misterioso; este é espião mesmo. Chamase Luis Mariano Lora.

Ele é chefe do Departamento de Combate à Atividade Subversiva Inimiga de Cuba. Lora, um dos homens mais temidos de Cuba, estava dentro do avião venezuelano, acompanhado de outros dois agentes. Foram Medeiros e o cônsul Parra, juntos, que entregaram os jovens campeões Lara e Rigondeaux nas mãos de Lora.

Quando os dois boxeadores foram remetidos de volta a Cuba, circulou nos bastidores do poder a informação de que a operação teria sido patrocinada por Hugo Chávez. Os senadores Heráclito Fortes (DEM-PI) e Arthur Virgílio Neto (PSDBAM) solicitaram informações oficiais sobre o caso ao ministro da Defesa, Nelson Jobim. A resposta chegou ao Senado na semana passada. O que se desnuda agora, debaixo das palavras burocráticas do ofício, é algo estarrecedor. Jobim informa o prefixo da aeronave, confirmando que veio da Venezuela. Revela que o avião que retirou os boxeadores decolou numa madrugada, 18 minutos de domingo. Revela também que o jato chegou ao Brasil ao meiodia de sábado 4 de agosto. Os boxeadores se apresentaram à polícia do Rio no início da tarde de sexta-feira 3 – e o governo só divulgou isso no final da tarde daquele dia. Ou seja, um vôo entre Caracas e Havana, e dali para o Rio, dura pelo menos 12 horas. Significa que Cuba teve informação privilegiada do governo Lula. O curioso é que, no mesmo momento em que os boxeadores informavam oficialmente às autoridades que gostariam de voltar a Cuba, no depoimento à PF no sábado 4, o avião já estava no Galeão à espera. “Está provado que o governo brasileiro facilitou a entrega de dois dissidentes a uma ditadura”, diz o senador Arthur Virgílio. “Agiram como Filinto Müller, o chefe de polícia de Vargas que entregou Olga Benário aos nazistas.”

A operação tinha que ser rápida. Já se sabe que Lara e Rigondeaux fugiram da delegação dos Jogos Pan-Americanos seduzidos pelas promessas de um empresário alemão. Eles foram à farra com prostitutas e bebidas no litoral do Rio, o empresário os abandonou e, sem dinheiro, pediram ajuda à polícia. A partir daí, tudo fica nebuloso. Uma autoridade da cúpula da República revelou à ISTOÉ que dois colegas aceleraram a operação de remessa dos garotos de volta a Fidel. São eles o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o assessor Internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Também revelou o nome do principal operador, José Hilário Medeiros.

Marco Aurélio é amigo de Hugo Chávez e admirador de Fidel Castro e foi ele quem avisou ao embaixador de Cuba no Brasil, Pedro Luiz Nuñez Mosquera, que Lara e Rigondeaux estavam com a polícia do Rio. A partir daí, segundo revela outra autoridade com assento no Planalto, toda a parte internacional da operação, inclusive os contatos com a Venezuela e com a FAB para permitir a entrada do jato Falcon, foram feitos por Marco Aurélio. Coube a Tarso Genro, por sua vez, pressionar a PF para acelerar o processo. O delegado federal Felício Laterça, de Niterói, colheu os depoimentos dos boxeadores. A um chefe, ele se queixou que estava sendo pressionado para “agilizar” a deportação dos cubanos.

As pressões foram tamanhas que levaram toda a burocracia a funcionar naquele fim de semana. José Hilário Medeiros operava junto à PF, em nome do ministro e do Planalto. Procurado por ISTOÉ, Medeiros disse, por intermédio de sua assessoria, que só fez “um trabalho de localização” dos boxeadores e passou a informação para “setores competentes”. Ele diz ter entregue ao ministro Tarso Genro um “relatório de toda a situação”, mas nega que tenha feito pressões para deportar os cubanos. A operação foi feita às pressas, sim. O delegado Laterça decidiu colher o depoimento de apenas um dos boxeadores. Este depoimento multiplicou-se por dois. Delegado, tradutor, escrivão e advogado endossaram a fotocópia. Quem fez a tradução foi o policial do serviço de inteligência da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, Moisés Colman. Numa primeira entrevista à ISTOÉ, o policial tradutor pediu dinheiro para falar a verdade. “Se tiver um cachê para me passar, depois a gente conversa, tá?”, disse Colman. Numa segunda entrevista, garantiu que só traduziu o que “os boxeadores” falaram. Nos dois depoimentos, obtidos por ISTOÉ, tanto Lara quanto Rigondeaux registram exatamente a mesma frase: “Que foi oferecido ao depoente se ensejava solicitar refúgio, o que foi negado, pois o depoente diz amar o seu país”. “Há fortes indícios de que o governo brasileiro permitiu que os cubanos fizessem forte pressão psicológica sobre os dois jovens”, diz o senador Heráclito Fortes. “E depois forjaram os depoimentos para legalizar a extradição.”

Mas o cônsul Tomás Issac Mendez Parra queria mais ênfase no arrependimento. No dia seguinte, sábado 4 de agosto, os dois cubanos voltaram a prestar novo depoimento na PF, desta vez com versões um pouco diferentes. Nesse segundo depoimento, o “intérprete” da PF foi o próprio Parra. O inacreditável é que as autoridades policiais tenham permitido isso. Desta vez, os cubanos se dizem “desejosos” de retornar à pátria, criando uma versão juridicamente perfeita para a entrega. As pressões chegavam aos ouvidos dos boxeadores por celular. Quando estavam sob os cuidados de Parra, os dois esportistas já tinham recebido informações nada boas de suas famílias, em Cuba. A companheira de Lara, Miriam, 20 anos, dizia que o governo de Fidel ameaçava tomar a casa do casal na rua Corombet, em Guantánamo, a moto e os móveis, se ele não voltasse logo a Cuba. O casal tem um filho. A esposa de Rigondeaux, Fara Colina, mandava avisar ao marido que o casal perderia a casa na rua Cien Y Bento, em Altabana, e o carro, caso pedisse asilo político no Brasil. Quando aterrissaram em Cuba, na manhã de domingo 5 de agosto, os boxeadores tiveram de ficar vários dias na “Casa de Descanso”, onde são realizadas as pregações ideológicas do regime.

O que mais chama a atenção nessa operação sigilosa é que em nenhum momento o Itamaraty foi consultado. O senador Virgílio perguntou isso ao chanceler Celso Amorim. Ele jura que nenhum diplomata foi informado da operação. Foi tudo organizado por Marco Aurélio Garcia, Tarso Genro e o ex-segurança José Hilário Medeiros, além do cônsul cubano. Segundo quatro autoridades ouvidas por ISTOÉ, o maior interessado na expulsão era Marco Aurélio Garcia. Procurado, o secretário do assessor informou que ele está em Paris. Na época, ninguém prestou atenção a uma revelação que Genro fez ao Senado. “O doutor Marco Aurélio teve uma intervenção. Ele me ligou na sexta-feira, se não me equivoco, sexta ou sábado, mas antes da deportação, e me perguntou: ‘Como que está o caso dos cubanos, como que está a situação dos cubanos?’”, contou. Tarso Genro, por sua vez, avisou através de sua assessoria que “não tem mais nada a acrescentar” sobre o caso.

Por telefone, ISTOÉ conversou com Erislandy Lara em sua casa, em Cuba. Ele ficou sabendo que o avião que o levou de volta à ilha não era do governo cubano e reagiu com a voz trêmula e titubeante. “Não sei nem o que pensar disso”, disse ele. O boxeador teme falar sobre o tratamento que recebe do governo: “Minha vida está mais ou menos.” Dias atrás, quando Lula esteve em Cuba, o senador Eduardo Suplicy, do PT, ofereceu aos dois a possibilidade de o presidente entregar uma carta pedindo clemência a Fidel. Dias depois, Miriam, mulher de Lara, avisou a Suplicy que a família prefere se manter calada para que ninguém os acuse de “traidores da revolução”.