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A história da família que já desembolsou mais de R$ 600 mil para tratar o filho mostra como a saúde é cara no Brasil. Confira a primeira parte da entrevista

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Confira a segunda parte da entrevista

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Confira a terceira parte da entrevista

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Confira a quarta parte da entrevista

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DEDICAÇÃO
O neurocientista Peláez e a farmacêutica Shirley se revezam 24
horas para cuidar do filho, David

A vida do pesquisador espanhol Francisco Javier Peláez e da farmacêutica paraense Shirley Taniguchi seguia tranquila, sem sobressaltos. Peláez se dedicava a dois doutorados – um em neurociência pela Universidade Autônoma de Madri e outro em engenharia mecânica pela Universidade de São Paulo – e Shirley, a lecionar na Faculdade de Enfermagem do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Moradores de Higienópolis, um dos metros quadrados mais caros da capital, eles tinham acesso ao que desejavam: viagens, restaurantes, cinema, teatro. Frequentemente, participavam de congressos no Exterior. Quando Shirley engravidou, foi uma alegria. O primeiro dos dois filhos planejados pelo casal, enfim, estava a caminho. Os projetos de família começaram a ruir no sexto mês de gestação. Era agosto de 2000. David nasceu prematuro e, depois de dez dias na UTI, sofreu convulsões e teve uma hemorragia cerebral. Os prognósticos eram terríveis. O menino não ouviria nem enxergaria, falaria ou andaria. Com a obstinação típica de pai e mãe, Peláez e Shirley foram à luta. Procuraram as melhores alternativas para estimular o cérebro do garoto, contrataram fisioterapeutas, recorreram ao home care. Em quase dez anos, investiram tudo o que podiam na saúde de David: mais de R$ 600 mil. O casal descobriu, da pior forma possível, o preço da vida no Brasil.

Cifras relativas aos cuidados com a saúde são, em geral, astronômicas. Quando o médico indica uma cirurgia ou um exame mais complexo, os brasileiros torcem para que o plano de saúde cubra tudo ou que o tratamento seja feito na rede pública. Só está livre dessa agonia quem tem um seguro-saúde de alto padrão, que cobre todas as despesas. Os clientes dessa modalidade podem pagar uma cirurgia sem que isso arruíne o orçamento familiar. Mas são poucos os que se encaixam nessa categoria. O que prevalece é o impacto crescente das despesas com médicos, remédios e procedimentos nas finanças domésticas. Por que pagamos tão caro pela nossa saúde? A resposta envolve uma intrincada cadeia de fatores que incluem desde a qualidade do primeiro atendimento recebido – se for equivocado, cria-se, por exemplo, a necessidade de recorrer a mais exames – ao uso excessivo da tecnologia. Eles se somam para encarecer os serviços.

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ROTINA
Todo dia, o home care entrega a recarga de oxigênio e david
faz exercícios com o pai. A banheira dele foi feita sob medida

“Estamos sempre no vermelho. Não saímos de casa, não vamos ao cinema. Praticamente não temos gastos pessoais porque a nossa prioridade passou a ser o David”, afirma Peláez. “Não comprava calças para mim há uns cinco anos. Até que minha mãe, que mora na Espanha, reclamou e disse que me mandaria um dinheirinho.” O passado num dos bairros mais luxuosos de São Paulo ficou para trás. A rotina do casal vem mudando de acordo com as necessidades de David. Depois de seu nascimento, Peláez e Shirley se viram obrigados a trocar o imóvel de Higienópolis por um mais barato. Até que, no ano passado, decidiram se mudar da capital. Foram para Santo André, a dez minutos da Universidade Federal do ABC, onde Peláez dá aula. Com o dinheiro da venda do imóvel, quitaram dívidas pendentes, financiaram o novo apartamento e bancaram uma reforma de R$ 30 mil para adaptá-lo à condição de David.

No Brasil, quem arca com a parte maior da conta da saúde é a família. Uma pesquisa do IBGE mostra que o governo cobre 41,6% do total dos gastos, enquanto a família custeia 57,4%. Em países desenvolvidos, como a França, a proporção é diferente: os governos assumem 70% da conta, deixando 30% para as famílias.

Em menos de uma década de vida, o menino fez quatro cirurgias – traqueostomia, gastrostomia, nas retinas e uma para drenar o excesso de líquido no cérebro. Apenas nesses procedimentos, a família desembolsou cerca de R$ 40 mil. Cada vez que David precisa sair de casa para um exame mais R$ 2 mil vão para a ambulância-UTI – um serviço que não é coberto pelo plano de saúde. “A negociação com a seguradora é muito difícil. Eles dizem gastar R$ 33 mil por mês com o David”, afirma Shirley. Por receio de ser demitida do hospital em que trabalha e, de repente, o filho perder o direito à assistência médica da empresa e ao home care, Shirley se viu obrigada a contratar um plano particular. Paga R$ 700 de mensalidade, apenas por precaução.

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REABILITAÇÃO
A fisioterapeuta ariane schwarz passa três
horas por dia acompanhando david

Cerca de 42 milhões de brasileiros possuem planos de saúde. Ao todo, são mais de 20 mil modelos de planos registrados na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Não há controle de preço. O valor mais alto, por um plano individual, é de R$ 2,8 mil mensais. “Se a pessoa quer acesso aos melhores hospitais e médicos, pagará mais por isso”, diz Solange Mendes, diretora da Federação Nacional de Saúde Suplementar.

O processo de reabilitação de David é lento. Aos olhos de um leigo, suas conquistas podem parecer insignificantes. Mas, para a ciência, os avanços foram imensos. Hoje, ele já ouve e enxerga alguma coisa, balbucia duas palavras, movimenta braços e pernas, está aprendendo a engatinhar. “Mais de 70% do cérebro dele foi afetado pela hemorragia. Nos EUA, diante de um quadro como esse, os médicos desligariam os aparelhos da criança por avaliar que o tratamento é caríssimo e a probabilidade de melhora é muito pequena”, relata Peláez. Ele conta que uma tomografia feita no ano passado mostra que parte do tecido cerebral do menino foi regenerado. David é acompanhado diariamente por uma fisioterapeuta. “Quase todo o tempo dos auxiliares de enfermagem também é dedicado aos exercícios”, conta Shirley.

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Um componente que faz subir o custo do tratamento é a aplicação exagerada ou inadequada de novas tecnologias. É na realização de exames de imagem, como a ressonância magnética e a tomografia computadorizada, que esse conflito fica mais evidente. Colabora para isso a crença, por parte dos pacientes e de médicos, de que fazer esse exame pode ser a garantia de um diagnóstico benfeito. E, de fato, estão sendo realizados mais exames do gênero. No período de 2000 a 2005, segundo o IBGE, os procedimentos de ressonância magnética cresceram 173%. “Há uma pressão forte da indústria sobre os médicos. Ela pode ser percebida, por exemplo, em algumas ações com intenção educativa”, critica Cláudio Lottenberg, presidente do Hospital Albert Einstein. “Existe uma voracidade por introduzir tecnologias que, fora do contexto certo, não agregam valor.”

PARTE 2