brasil_crime_04.jpgMorrer assassinado no Brasil é fácil. O criminoso ser preso, julgado, condenado e trancafiado numa cadeia está cada vez mais difícil. Pessoas são mortas num piscar de olhos, mas os assassinos, ainda que condenados, permanecem a anos-luz do que se poderia chamar de uma punição justa. É legal aquilo que está nos códigos. É justo aquilo que corresponde aos parâmetros e aos reclames morais da sociedade – e o que é legal não é, necessariamente, legítimo, justo e moral. Em nosso país, é justamente isso, o abismo que separa o chão firme da moral do terreno pantanoso e pleno de brechas da legislação criminal, que leva a sensação de impunidade à população.

“O sistema processual penal foi feito para não funcionar”, diz a procuradora do Ministério Público Federal de São Paulo, Janice Ascari. “Há infinitas possibilidades de recursos e isso leva à impunidade.” Também o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, põe a enxurrada de recursos no banco dos réus: “Há excesso deles.”

brasil_crime_01.jpgO Brasil possui, no campo das garantias individuais, uma das mais modernas Constituições do planeta, à qual o doutor Ulysses Guimarães, no ato de sua promulgação, chamou de “Constituição cidadã”. Por exemplo: aqui, o réu tem direito a mentir, não é obrigado a produzir provas contra si mesmo – é o caso de Christiam Cravinhos que mentiu deslavadamente ao dizer ao tribunal do júri que não havia assassinado Marísia Richthofen ou do motorista embriagado que pode se recusar a assoprar no bafômetro. Nos EUA, o réu flagrado em mentira é condenado não apenas pelo crime que praticou, mas também por falso testemunho – e tem a sua pena aumentada. A nossa Constituição é pródiga em benefícios desse tipo e na construção de uma escadaria de recursos que vão empurrando a punição a tribunais superiores porque vinha o Brasil dos porões da ditadura. Mas o Brasil de 1988, no campo da criminalidade, não era o Brasil de hoje. Transcorridos quase duas décadas, ficou-se com leis que não se casam com os desejos da sociedade e há uma inadequação entre o crime e o castigo. É preciso mudar a legislação. “Muitos homicidas quando são condenados, como o jornalista Antonio Pimenta Neves, não vão para a cadeia”, diz a procuradora de Justiça do Ministério Público Estadual de São Paulo, Luiza Nagib Eluf, autora do livro A paixão no banco dos réus.

Em relação a diversos países, as penas máximas previstas nos códigos brasileiros são altas, só que geralmente os réus são condenados a penas mínimas. Isso no terreno dos crimes contra o patrimônio, como, por exemplo, o roubo e o seqüestro. O estranho é que, quando se trata de crimes contra a vida, como o assassinato, as penas no Brasil são muito mais brandas se comparadas às de outros países. Enquanto o homicídio qualificado (caso de Suzane Richthofen, de Pimenta Neves, do ex-promotor público Igor Ferreira) é punido com condenações que vão de 25 anos de cadeia à prisão perpétua (na França, na Itália e na Alemanha), no Brasil a punição vai de 12 a 30 anos de reclusão. Ou seja: protege-se mais o patrimônio do que a vida. “O que estarrece a população é saber que a esmagadora maioria dos presos é composta de assaltantes e de seqüestradores, muitos não julgados, enquanto suspeitos e réus confessos de homicídio permanecem livres”, diz o juiz aposentado Luiz Flávio Gomes, um dos maiores especialistas mundiais em direito penal.

brasil_crime_03.jpgO paraíso dos que matam, no entanto, não termina aí. O horizonte para os que cometem atrocidades vai mais além em outra aritmética. Primeiro: ninguém fica preso no Brasil por mais de 30 anos, ainda que condenado a mais de seis séculos – há casos de sentenciados a essa eternidade que saíram livres do tribunal e aguardaram em liberdade o segundo júri, como o coronel Ubiratan Guimarães, responsabilizado em seu primeiro julgamento pela morte de 111 presos na extinta Casa de Detenção de São Paulo em 1992. Segundo: cumpridos um sexto ou dois terços da pena, o preso tem direito a pleitear, respectivamente, regime semi-aberto ou liberdade condicional. Terceiro: pesquisa recente no Rio Grande do Sul mostrou que, no Brasil, 95% dos assassinatos não são investigados e, quando o são, os inquéritos policiais são encerrados sem que se descubra o criminoso. Isso significa que apenas 5% dos homicidas são julgados, enquanto esse índice é de 85% na Espanha, 93% na Inglaterra e quase 100% nos EUA. “Temos uma ineficácia dos órgãos policiais, temos uma ineficácia da máquina judiciária emperrada, temos uma execução judicial lenta”, diz Alberto Zacarias Toron, um dos principais advogados criminais do Brasil. Assim, a balança da Justiça, devido à legislação e não ao desejo dos juízes, anda descalibrada na relação entre crime e castigo. E anda pendendo, pobre de nós e de nossas famílias, para a impunidade dos assassinos.


Punição nada exemplar

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Enganam-se os que acham justa a pena de 39 anos e seis meses de prisão dada a Suzane Louise von Richthofen, condenada pelo assassinato de seus pais, a psiquiatra Marísia e o engenheiro Manfred von Richthofen (o crime foi em 2002, em São Paulo, e dele também participaram os irmãos Daniel e Christian Cravinhos). Pasmem! Em tese, ela poderá sair da cadeia em apenas dois meses. A pena aplicada pelo juiz do I Tribunal do Júri Popular, Alberto Anderson Filho, está tecnicamente legal. Ele fez o que o Código Penal manda e, sendo juiz, não poderia agir diferente. Mas diferença há, isso sim, entre legalidade e justiça. Como Suzane já ficou presa cerca de três anos antes do júri (parte disso em prisão domiciliar), a pena cai agora para 36 anos e seis meses. Com um sexto desse total, ou seja, seis anos e um mês, ela poderá pleitear o direito de passar ao regime semi-aberto: sairá diariamente da cadeia durante o dia e só retornará para dormir. O seu advogado, Mauro Nacif, recorreu ao Tribunal de Justiça pedindo diretamente a absolvição da assassina no caso da morte do pai (alega que os sete jurados se confundiram ao votar esse aspecto). Se o Tribunal concordar, a pena de Suzane desaba para 19 anos. Se isso fosse já, ela iria para o semi-aberto no final de setembro.

No ouvido, à queima-roupa

brasil_crime_02.jpgUm tiro pelas costas, disparado à distância, outro tiro à queima-roupa, dessa vez no ouvido, matou a jornalista Sandra Gomide em agosto de 2000, em um haras na cidade paulista de Ibiúna. O algoz foi o também jornalista Antônio Pimenta Neves e o injustificável motivo do assassinato foi ciúme patológico: Sandra não o queria mais como namorado. Ele chegou armado ao haras e a esperou – premeditou o crime. Quando o consumou, saiu dirigindo seu carro e se homiziou na casa de um amigo, depois se internou em uma clínica. A tese da defesa foi a depressão. Equívoco: quem está deprimido nem sequer consegue se mover para matar – pode até se suicidar, não assassinar. Pimenta foi condenado a 19 anos de prisão, mas saiu livre do tribunal e aguarda resultado de recursos em liberdade. “É um absurdo. A lei fixa que homicídio é inafiançável, mas deixaram o réu na rua sob a alegação de ausência de pressupostos da prisão preventiva”, diz o promotor de Justiça e professor de direito processual penal Fábio Ramazzi Bechara. Nos EUA, ainda que se aceitasse a tese de crime passional, o réu seria condenado à prisão perpétua. Se ficasse diagnosticado o seu transtorno de personalidade narcísica, seria internado por tempo indeterminado numa clínica, sob a custódia do Estado.

Daqui a três meses, o monstro

O estômago dos brasileiros virou em novembro de 2003 com a selvageria a que foi submetido o casal de namorados Felipe Café, 19 anos, e Liana Friedenbach, 16. Eles acampavam na cidade paulista de Embu-Guaçu. Foram seqüestrados. Felipe foi assassinado com um tiro na nuca. Liana amargou um calvário ao longo de cinco dias nas mãos de um menor apelidado Champinha: foram oito estupros até ser trucidada com um facão. Champinha, então com 16 anos, foi o mentor de tudo. Preso, está internado na Febem para cumprir “medida socioeducativa”, mas, segundo a lei, poderá voltar às ruas daqui a três meses quando completar 19 anos. “A Justiça deve entender que há menores que têm de ser condenados como adultos porque cometem crimes de adultos”, diz o promotor de Justiça Fábio Ramazzini Bechara. Na Inglaterra, por exemplo, criança de 11 anos já foi condenada à prisão perpétua por homicídio. Serve de alento às famílias de Liana e Felipe o fato de outros três bandidos envolvidos no crime terem sido condenados a penas que, somadas, beiram os 200 anos. Mas o principal responsável pela barbárie, o cérebro Champinha, poderá ganhar a liberdade.

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