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Ailton Barreto sempre foi o que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) gosta de chamar de um eleitor exemplar. Desde que completou 16 anos compareceu religiosamente à sua zona eleitoral em todas as eleições, fossem elas para prefeito, vereador, deputado ou presidente da República. Médico veterinário por profissão, em 2004 aventurou-se no mundo da política e conquistou uma vaga na Câmara de Vereadores da pequena cidade de Pereira Barreto, no interior paulista – vaga esta perdida nas eleições de 2008. Este ano, no entanto, Ailton provavelmente não vai votar. Não porque a experiência como parlamentar o desiludiu, o que até poderia ser compreensível. Ele não votará porque faz parte do último grupo de eleitores brasileiros que não pode exercer o direito constitucional de escolher seus representantes por negligência do Estado. Ailton está preso por tráfico de drogas e ainda aguarda julgamento. Apesar disso, ele tem o mesmo direito de votar que qualquer cidadão livre. De acordo com a legislação brasileira, apenas condenados em última instância têm seus direitos políticos cassados. Mas na prática, antes mesmo de receberem a primeira sentença, os mais de 150 mil presos provisórios e 11 mil menores infratores brasileiros têm o direito tolhido. Isso acontece, na maior parte das vezes, por uma simples questão de vontade política. Em alguns casos os tribunais eleitorais não oferecem urnas ou mesários; em outras as secretarias de Administração Penal dos Estados não se preocupam em identificar quem pode ou não votar. “Não é o preso que deve pagar, e sim o Estado se flexibilizar”, diz o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante.

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PENA DUPLA
Preso por tráfico, Ailton ainda não foi julgado e quer votar este ano
 

A Justiça Eleitoral brasileira é um exemplo de flexibilização quando o assunto é fornecer condições para que os mais de 130 milhões de eleitores do País possam exercer seu direito. Comunidades indígenas dos locais mais remotos da Amazônia, habitantes de ilhas isoladas de uma costa de mais de oito mil quilômetros e mesmo moradores das favelas mais violentas das grandes metrópoles brasileiras têm as urnas à sua disposição em todos os anos eleitorais. Com os presos provisórios, no entanto, a situação é diferente e reflete a maneira como o Estado historicamente trata a população menos favorecida e sem força política. “Quando se trata de detentos, as pessoas dizem que bandido vota em bandido, não há interesse em atendê-los, seja por preconceito, seja por falta de interesse da classe política”, diz o coordenador do Movimento pela Consciência Prisional, o advogado Rodrigo Puggina. Hoje, de acordo com dados do Censo Penitenciário do Ministério da Justiça, 55% dos quase 410 mil presos brasileiros são negros ou pardos e 45% deles não chegaram nem mesmo a concluir o ensino fundamental. Outras 60 mil pessoas estão detidas em carceragens de delegacia e não entram nas contas do Censo.

A alegação tanto dos órgãos de administração penitenciária quanto dos tribunais eleitorais é de que falta infraestrutura básica para que os presos possam votar. A principal delas, por incrível que pareça, é saber quantos e quem são os detidos aptos a ir às urnas em 3 de outubro. “Devido à superlotação e à quantidade de presos irregulares, que já deveriam ter sido soltos ou estar detidos em outros estabelecimentos, essa é uma tarefa difícil”, diz Airton Aloísio Michels, diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional. “Temos condições de realizar o pleito com segurança e organização, basta haver um esforço conjunto dos TREs e das administrações penitenciárias.” O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE) – Estado que concentra pouco menos de 40% de todos os presidiários brasileiros – não tem a mesma opinião. Em 2009, o TRE-SP se recusou a viabilizar a ação.

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Os juízes alegaram ser impossível cadastrar e garantir o voto dos presos provisórios até a eleição. O tribunal também afirma ser extremamente difícil realizar o pleito com segurança. Outro problema seria conseguir mesários dispostos a entrar nos presídios. “Normalmente, os eleitores são convocados a trabalhar nas eleições”, explica o juiz Walter de Almeida Guilherme, atual presidente do tribunal. “Mas não podemos obrigar alguém a entrar em um presídio para prestar este serviço”, diz Almeida, o único voto favorável entre os juízes do tribunal à concessão do direito de os presos votarem. “Nós descumprimos há 22 anos um direito constitucional.” Em julho do ano passado, um grupo de mais de 100 entidades da sociedade civil encaminhou um manifesto ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Conselho Nacional de Justiça pedindo que os direitos constitucionais dos presos fossem cumpridos. No documento citavam experiências bemsucedidas em algumas unidades prisionais de 11 Estados e pediam que a ação fosse estendida a todas as cadeias e prisões brasileiras. Os dois órgãos instauraram uma comissão de trabalho para analisar o tema e no próximo dia 5 o ministro do TSE Arnaldo Versani deve dar um parecer sobre o assunto, que será votado então pelo plenário do tribunal.

Não há nenhuma garantia de que a decisão do TSE mude o estado das coisas, mas as entidades que defendem o direito dos presidiários veem com otimismo o fato de o tribunal discutir o assunto. “O voto do preso provisório e do adolescente internado tem tudo para se tornar realidade. Eu acredito e espero que ainda em 2010”, diz Kenarik Boujikian Felipe, juíza e cofundadora do conselho executivo da Associação dos Juízes para a Democracia. Ailton, o ex-vereador preso em São Paulo, espera que a decisão do TSE devolva-lhe o direito de votar ainda nessas eleições. “O sistema prisional está abarrotado e, se as pessoas aqui puderem escolher alguém que defenda seus interesses, com certeza a vida delas vai melhorar.” Ailton sonha em ser libertado antes das eleições. Se isso, por alguma razão, acontecer e seu título de eleitor tiver sido transferido para o Centro de Detenção Provisória, ele garante que fará questão de voltar apenas para votar. “Não existem barreiras para quem está disposto a exercer seus direitos.”