Única autoridade brasileira que tem no currículo os cargos de diretor da Polícia Federal (PF) e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o delegado Paulo Lacerda agora tem motivo para acreditar em Papai Noel. No caso, o bom velhinho gosta de vestir vermelho, tem barriga saliente, barbas grisalhas e atende pelo nome de Luiz Inácio Lula da Silva. No apagar das luzes do fim do ano, em 29 de dezembro, o presidente da República criou o cargo de adido policial em Portugal e o presenteou ao delegado Lacerda. Trata-se de um cargo com salário de US$ 19 mil (cerca de R$ 42 mil) que não foi sequer solicitado pelo Ministério das Relações Exteriores.

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PRESENTÃO Lacerda ganhou cargo na Europa e salário de US$ 19 mil

"Preocupa-me o governo passar por cima das normas para nomear o Paulo Lacerda"

Marcelo Itagiba, deputado (PMDB-RJ)

O senador Heráclito fortes teme que a indicação crie constrangimento para Portugal,

pois adidos policiais vão aonde há tráfico e contrabando

"Cabe ao Ministério da Justiça identificar a demanda pela criação de cargos de adidos no Exterior", disse à Istoé a assessoria de comunicação do Itamaraty. O problema é que o presentão poderá ser devolvido. Senadores e deputados e as principais representações sindicais dos delegados e agentes da Polícia Federal decidiram questionar a nomeação de Lacerda, que atropelou toda a legislação interna do governo e os padrões de ética que o delegado pregou nas duas instituições que chefiou. "O governo federal usou a mesma estratégia autoritária da medida provisória para criar o cargo para o Lacerda", esbravejou o senador Pedro Simon, do PMDB gaúcho. "Foi criada uma situação ridícula e constrangedora; deveria esperar a CPI dos Grampos terminar para saber se ele é culpado ou inocente", diz Simon. "É um governo autoritário, que está acostumado a ser o dono da verdade."

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O presidente da Comissão de Defesa do Senado, Heráclito Fortes, do DEM piauiense, já mandou fazer um levantamento das irregularidades que envolvem a nomeação de Lacerda para o cargo em Lisboa na tentativa de impugná- la. "Não é rotineira a nomeação dele. Pode até resolver o problema do Lacerda, mas deixa mal o governo. Vai criar um constrangimento para o governo português, pois adidos são para regiões específicas de tráfico e contrabando, o que não é característica de Portugal", completa Fortes. Vítima do que seria um grampo ilegal da Abin, o senador Demóstenes Torres, do DEM goiano, também ficou irritado ao saber que a nomeação de Lacerda atropelou a legislação interna da PF. Procurador de carreira, o senador, de férias na França, também pretende contestar a indicação no Ministério Público ou por meio de ação popular. "A nomeação é questionável", diz Torres. "O Lacerda caiu pelo consórcio irregular da PF e da Abin e agora o governo quer criar um caso Riocentro, para chegar à conclusão de que não aconteceu nada."

A nomeação, segundo apurou ISTOÉ , atropelou dezenas de dispositivos da Instrução Normativa número 001, de 2005, da PF. Curiosamente, os critérios de preenchimento de cargos de adidos foram definidos pelo próprio Lacerda, que agora desrespeita a regra que criou. O artigo 7º diz ser requisito para a função o delegado não haver estado nos 12 meses anteriores ao processo seletivo à disposição de outro órgão ou instituição. Lacerda estava na Abin. o artigo 8º determina que a direção geral da PF faça processo seletivo, ao qual podem concorrer todos os policiais federais que preencham os requisitos. o artigo 10º diz que a direção da PF é quem deve encaminhar os nomes ao ministro da Justiça. A seleção deveria levar em conta ainda o número de idiomas que o candidato domina, condecorações, cursos de nível superior, elogios e funções gratificadas. No caso de Lacerda, Lula primeiro criou o cargo e jogou o pepino para o diretor-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa, e o ministro da Justiça, Tarso Genro descascarem.

Uma missão difícil. As principais representações sindicais de delegados e policiais federais também querem Lacerda fora da embaixada em Lisboa. o presidente do Sindipol, delegado Joel Zarpellon Mazo, disse à ISToé que a diretoria-executiva vai contestar a indicação. A contestação, acrescentou ele, será feita primeiramente por via administrativa, através de representação à direção geral da PF, para que a instituição seja obrigada a cumprir a legislação. Caso isso não seja respeitado de forma imediata, o Sindipol vai recorrer à Justiça contra a nomeação de Lacerda. "o governo não seguiu os ritos e a legislação foi mandada para o espaço", protesta Mazo. "o presidente Lula mandou abrir uma adidância em Portugal e indicou o delegado Lacerda. é a voz do imperador", conclui. o presidente da Fenapef, Marcos Wink, também vai entrar com recurso contra a nomeação de Lacerda. "A tendência é entrarmos com mandado de segurança ou uma representação ao Ministério Público", diz Wink. "Para se habilitar, há uma série de requisitos, com pontuação, as línguas que o delegado domina, os cargos ocupados, mas o governo passou por cima disso tudo."

Na cPi dos Grampos, o presentão dado a Lacerda também provocou reação. o presidente da comissão, deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), vai sugerir o indiciamento de Lacerda por mentir à CPI. Pedirá ainda ao Ministério Público Federal que tome as medidas cabíveis contra o ex-chefe da PF e da Abin. "Preocupa-me o governo passar por cima das normas para nomear o Paulo Lacerda", disse Itagiba. "A conduta dele terá reflexo na função pública de adido."

Oficialmente, a PF diz que a missão prioritária de Lacerda na suntuosa sede da embaixada do Brasil em Lisboa, na Quinta Milflores, será a investigação de crimes de lavagem de dinheiro. Mas o principal contencioso policial dos dois países é mesmo o tráfico de prostitutas brasileiras para a Europa. Lá, na monótona embaixada, o delegado poderá apreciar um retrato pintado por Di Cavalcanti, de Pero Vaz de Caminha, autor da carta do Descobrimento, na qual pedia ao rei um emprego para um parente. Lacerda ganhou notoriedade com o caso PC Farias e ao estruturar a Polícia Federal, quando prendeu mais de seis mil suspeitos de crime do colarinho-branco sem dar um único tiro. Mas mentiu ao Congresso sobre o real envolvimento da agência na operação Satiagraha, que investigou o banqueiro Daniel Dantas. Só da Abin participaram mais de 80 agentes, embora Lacerda tenha dito que não havia digitais da agência na operação. Mentira ou incompetência? Em uma série de reportagens em 2008, ISToé desnudou o submundo da arapongagem ao publicar os nomes de espiões que participaram da investigação ilegal.

Mesmo assim, ao que parece, Lacerda segue com o prestígio em alta no Palácio do Planalto. Talvez por ser ele uma espécie de arquivo vivo das informações mais privilegiadas desses seis anos de governo. Não bastasse o presentão de Natal, ao elaborar uma lista de prováveis nomes para ocupar a direção da Abin, o governo elencou como principais candidatos os atuais diretores alçados ou mantidos nos cargos por Lacerda, incluindo o diretor do departamento de gestão, Ronaldo Belham, de inteligência estratégica, Luiz Alberto Salaberry, e o diretor interino, Wilson Roberto Trezza. No páreo está ainda o secretárioadjunto de acompanhamento de estudos institucionais do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, José Antônio Macedo Soares. outro nome comentado dentro da Abin é o do diretor da Secretaria de Desenvolvimento do Centro-oeste do Ministério da Integração, Christian Schneider.

Só que para nomear o novo diretor da Abin, Lula terá de encarar novamente a disputa dos militares pelo cargo. Nos últimos dez anos, os fardados perderam três ministérios, que foram transformados em comandos: da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Já o Ministério da Defesa, que congregou os três comandos, sempre foi controlado por civis. A briga promete. Como se vê, é mais uma trincheira de luta em que Lacerda pode sair derrotado.