Desde 1991, após a queda do comunismo, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, já não se preocupava mais com a Teologia da Libertação. A partir daí, o todo-poderoso guardião da ortodoxia católica deixou de ver perigo no movimento católico que enfatizava “a opção preferencial pelos pobres”. Tanto que a própria Teologia da Libertação já se reorganiza hoje, agora em silêncio. Mesmo assim, a eleição de Ratzinger não deixou de ser um duro golpe para os setores identificados como “progressistas” da Igreja Católica brasileira – agora já não hegemônicos –, que desempenharam um papel fundamental nessa articulação latino-americana em busca de uma igreja menos hierarquizada e mais participativa. Foi uma ducha de água fria, em especial para figuras como o teólogo Leonardo Boff, punido com o “silêncio obsequioso” em 1985 pela Cúria Romana, depois de uma vigilância imposta pela congregação comandada por Ratzinger. Ironicamente, Boff apresentou sua defesa a Roma com um texto no qual utilizava frases do próprio Ratzinger, quando este, nos tempos do Concílio Vaticano II (1962-1965), era um defensor da descentralização. Depois, o novo papa mudou.

A eleição de Ratzinger desagradou aos “progressistas”, mas também
aos “moderados”, que apontavam a necessidade de a Igreja se abrir para novos tempos. O papável
dom Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo, ao deixar o Brasil para ir ao conclave, falou da necessidade de um diálogo com a ciência e as novas tecnologias. “Ao ser eleito alguém que já era da Cúria, a perspectiva que se desenha é a do continuísmo. Mas não necessariamente, porque ali dentro as tendências não são tão homogêneas”, observa o teólogo Márcio Fabri dos Anjos, especialista em bioética e professor da Faculdade Nossa Senhora Assunção, da Arquidiocese de São Paulo.

Coesão – Embora não surpresos, vários “progressistas” sentiram-se chocados, num primeiro momento, com a eleição de Ratzinger. “Confirmou-se a tese de uma igreja forte, coesa, com solidez de doutrina e de centralização, para falar com uma sociedade pluralista, conforme Ratzinger adiantou na abertura do conclave”, disse Fabri. Num segundo momento, os “progressistas” – mais conformados e misturando análise com esperança – avaliaram que o papa Bento XVI, aos 78 anos, deverá ter um pontificado curto.

E pode preparar terreno para uma transição. Alguns chegaram a lembrar que Ratzinger já teve dois aneurismas, um deles quando tinha 74 anos. Portanto, a eleição de um nome da Cúria Romana, conservador e muito mais jovem, com possibilidades de exercer um pontificado tão longo como foi o de João Paulo II (que durou 26 anos e meio), abriria bem menos chances para uma renovação no futuro. “Só a diferença de idade entre Ratzinger e João Paulo II, quando foi eleito, é o dobro do que pode durar o papado de Bento XVI”, observa o filósofo Mário Sérgio Cortella, professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP. Um conservador como Ivan Dias, arcebispo de Mumbai (antiga Bombaim), que poderia ficar muito mais tempo no cargo, “provocaria rupturas”, avalia Cortella. E a rapidez da votação sinaliza que mesmo os cardeais que não estavam de acordo com a centralização da Cúria também deram os seus votos para garantir os dois terços necessários para a eleição de Bento XVI. Tudo indica, na avaliação do especialista, que houve uma articulação para a transição. Afinal, nos últimos dez anos, João Paulo II teve sérios problemas de saúde, agravados nos últimos cinco, e ele próprio estimulou a discussão sobre sua sucessão.

Desgosto – Há críticas e muita expectativa. “Ratzinger tornou-se responsável por um grande número de desgostos na Igreja. Houve muita insatisfação represada exatamente por causa de sua inflexibilidade. Mas, como ele cumpria ordens, pode ser que agora surpreenda”, torce Domingos Zamagna, professor de filosofia da Unifai, ligada à Igreja Católica. O teólogo e ouvidor da PUC-SP, Fernando Altemeyer, disse esperar que Ratzinger volte a ser “o padre que andava de bicicleta, quando era professor em Munique”. O bispo de Blumenau, dom Angélico Sândalo Bernardino, também deseja que Bento XVI repita o seu antecessor, Bento XV, que “socorreu muitas vítimas da Primeira Guerra Mundial e, por ser um homem de diálogo, chegou a receber até uma estátua na Turquia, um país muçulmano”. Para os conservadores, a rápida eleição significou um sinal de continuidade. “Os cardeais quiseram o prosseguimento do papado de João Paulo II”, diz o professor Carlos Alberto Di Franco, membro da Opus Dei no Brasil.