Um servo fiel do finado papa João Paulo II. Assim se definiu o cardeal alemão Joseph (pronuncia-se Iôssêf) Ratzinger, ao ser eleito o novo papa, Bento XVI, na terça-feira 19, em Roma. Ratzinger, em seu discurso aos milhares de fiéis, ainda citou a Virgem Maria, em mais uma demonstração de sua afinidade com seu antecessor, morto no dia 2 de abril. A confiança e o respeito do falecido papa pelo cardeal alemão eram imensuráveis, tanto que as grandes decisões do Vaticano sempre passavam pela mesa de Ratzinger antes de ser aprovadas ou recusadas por João Paulo II. Em 2002, alegando cansaço, o cardeal ultraconservador ameaçou deixar o cargo de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício, ou Tribunal da Inquisição), que ocupava desde 1981. Mas João Paulo II o convenceu de abandonar a idéia da aposentadoria e seguir em frente. Até porque Ratzinger sempre foi um excelente zelador da doutrina tradicional da Igreja. Desde então, seu nome sempre foi lembrado como um papável, principalmente quando a saúde de Karol Wojtyla dava sinais de fragilidade. O cardeal alemão era tão próximo a João Paulo II que presidiu a missa campal pelo papa morto.

Os vaticanólogos sempre admitiram que no último século nunca houve um alemão com tanta influência no Vaticano. Ao mesmo tempo, era um bávaro que andava com seu próprio carro por Roma e sentava-se com estudantes para tomar um capuccino nos arredores do Vaticano. Um homem de hábitos simples, de fala direta, pianista e fã de Beethoven, um intelectual respeitado que discursa em dez línguas, entre elas latim e grego.

Nascido em 16 de abril de 1927, num sábado de Aleluia, em uma família tradicional da pequena cidade de Marktl-amm-Inn, na conservadora e
católica Bavária, Joseph Ratzinger viveu parte
de sua adolescência sob a Alemanha nazista. Em 1939, aos 12 anos, ele ingressou no seminário de Traunstein, mas a eclosão da Segunda Guerra fez com que interrompesse seus estudos, que passaram a ser ministrados pelo pai policial. Em 1944, fez treinamento militar na Juventude
Hitlerista, em uma unidade de defesa antiaérea. Em sua biografia, disse ter sido forçado a entrar para as tropas de Adolf Hitler, como todo cidadão alemão, mas que nunca pertenceu ao Partido Nazista. Ratzinger desertou em 1945 e retornou à sua casa em Traunstein quando as tropas aliadas lá chegaram; nessa ocasião, foi preso pelos soldados americanos. Depois de libertado, ele e seu irmão George reingressaram ao seminário em novembro do mesmo ano.

Foi ordenado padre em 29 de julho de 1951 e dois anos depois, doutorou-se em Teologia Dogmática com uma tese sobre Santo Agostinho, com um dos seus mais renomados escritos, Povos e a Casa de Deus na Doutrina de Santo Agostinho da Igreja. Nas últimas décadas, o novo pontífice publicou mais livros que João Paulo II, como O espírito da liturgia e Sal da Terra. Muitas vezes chamado maldosamente de “policial da fé”, o brilhante teólogo sempre defendeu com palavras claras conceitos freqüentemente polêmicos. Disse não ao aborto, aos métodos contraceptivos, à fertilização artificial, à ordenação das mulheres, à união dos homossexuais e por essas e outras posições conservadoras era admirado pela Opus Dei, a ordem leiga ultraconservadora transformada em prelazia pessoal por João Paulo II.

Repressão – Foi um tenaz combatente da Teologia da Libertação. Na condição de guardião da fé católica, puniu em 1985 o ex-frade franciscano e teólogo brasileiro Leonardo Boff a um ano de “silêncio obsequioso”. Se a ortodoxia hoje rege os pensamentos de Ratzinger, os liberais que conviveram com ele e depois foram perseguidos, como o teólogo compatriota Hans Küng, afirmam que nem sempre ele foi assim. Küng confessou ter admiração por Ratzinger quando o alemão trabalhou como consultor para o Concílio Vaticano II (1962-1965). Na década de 60, durante o Concílio Vaticano II, ele se identificava plenamente com as idéias de liberdade religiosa e de diálogo entre as religiões. Por suas posições, o professor Ratzinger foi convidado em 1966 por Küng para lecionar na Universidade de Tübingen. Mais tarde, os dois se tornaram adversários ferrenhos. Küng, que como o brasileiro Boff foi punido por Ratzinger, acusou-o “de vender a alma em troca de poder”.

O movimento estudantil de 1968, com seu ímpeto revolucionário de “tomar de
assalto os céus” e pôr abaixo a moral tradicional, representou o divisor de
águas que faria Ratzinger adotar posições cada vez mais conservadoras e entrar em rota de colisão com os católicos liberais. Foi quando ele renunciou ao cargo em Tübingen e refugiou-se na tranqüila Universidade de Regensburg. Apesar da ortodoxia, muitos alunos se recordam com carinho e simpatia do ex-professor de teologia. Ele também lecionou na Universidade de Munique. Em 1977, foi nomeado arcebispo daquela cidade e criado cardeal pelo papa Paulo VI. Tomou parte nos conclaves de 1978, que elegeram os papas João Paulo I e João Paulo II. Em 1981, Ratzinger foi convidado por João Paulo II a assumir a Prefeitura da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé.

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Outra polêmica criada por Ratzinger foi sobre
o diálogo ecumênico. Em 2000, o cardeal
publicou o documento Dominus Iesus: sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e a Igreja, em que proibia os bispos católicos de utilizar a expressão “igrejas irmãs” para se referirem às outras igrejas cristãs. O documento dizia que outras igrejas que não aceitassem a autoridade do papa eram “deficitárias”. O livro A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga, escrito por ele e pelo jornalista católico italiano Vittorio Messori, traz a essência dos pensamentos do futuro papa. “Não são os cristãos que se opõem ao mundo. É o mundo que se opõe a eles quando é proclamada a verdade sobre Deus, sobre Cristo e sobre o homem. O mundo revolta-se quando o pecado e a graça são chamados por seus próprios nomes. Depois da fase das ‘aberturas’ indiscriminadas, é tempo de o cristão reencontrar a consciência de pertencer a uma minoria e de estar muitas vezes em oposição ao que é óbvio e natural para aquilo que o Novo Testamento chama – e não certamente em um sentido positivo – de espírito mundano.”

Nesse livro do pontífice eleito, a Igreja não é uma construção humana, mas de Jesus Cristo. Nestes tempos em que o diálogo com outras igrejas é mais do que necessário, principalmente em face do crescimento mundial do pentecostalismo e do islamismo, o novo papa terá que estar aberto para as relações diplomáticas. Aliás, seu antecessor, João Paulo II, era um mestre da diplomacia e das relações internacionais. Assim como São Bento, um homem severo que viveu em épocas de miséria, fome, pestes e terromotos e quando Roma vivia o declínio de sua posição de potência mundial, o papa Bento XVI também enfrentará tempos bastante turbulentos e de rápidas mudanças.


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