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O Brasil está diante de uma oportunidade sem precedentes para reverter a forma como encara a corrupção e a impunidade. Nas últimas décadas, o País conseguiu o respeito da comunidade internacional por seus feitos econômicos e sociais. Apesar de dar provas de uma democracia capaz de enfrentar as idiossincrasias políticas e constituir-se eficiente, com um processo eleitoral invejado pelo mundo e ágil em fazer valer os seus princípios democráticos, faltava-lhe ainda a coragem de punir aqueles que usam o poder para o enriquecimento ilícito roubando o dinheiro de um povo sacrificado. Vencida esta etapa, o capítulo seguinte começa com uma pergunta: O caso José Roberto Arruda, o primeiro governador em exercício preso por corrupção, pode ser uma mudança de paradigma?

Logo depois da decisão da Justiça, a questão entrou em pauta e há muito a se fazer para o País abraçar essa chance histórica e, ao menos, reduzir a praga da corrupção que ameaça a democracia. “Essa medida, forte e necessária, inaugura uma nova fase no Brasil e é um sinal para todo o País de que há pouca tolerância à corrupção”, afirma Antonio Carlos Bigonha, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. Para esta esperança tornar-se um divisor de águas, no entanto, há muitas lições a se apreender. A primeira foi o papel da tecnologia, uma aliada fundamental para a produção das mais contundentes provas de corrupção já enviadas a um tribunal no País. Mas isso só foi possível após se comprovar a eficiência de uma legislação – adotada pelo País com certo atraso – que permitiu a delação premiada e se associou ao aprimoramento das técnicas de investigação, tanto da polícia como do Ministério Público.

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“Esse caso é também um marco pela ousadia e pela perfeição das gravações feitas para comprovar o que estava acontecendo no Distrito Federal”, resume o criminalista Tales Castelo Branco. As imagens enterraram ainda o dito popular segundo o qual “corrupto não deixa recibo”. Afinal, desde que os portugueses aportaram no Brasil, existem muitos relatos, mas poucas provas de desvio de dinheiro público. Ainda nos tempos do Império, ganhou fama o tesoureiro-mor de dom João VI, Bento Maria Targini, que chegou a barão e depois a visconde de São Lourenço. “Quem furta pouco é ladrão. Quem furta muito é barão. Quem mais furta e esconde, passa de barão a visconde”, dizia quadrinha popular da época. De lá para cá, a mistura entre público e privado não parou de acontecer no submundo da política. Raras, porém, foram as punições àqueles que embolsaram recursos que deveriam administrar com rigor.

Por isso é importante, neste momento, discutir o que ocorreu de diferente desta vez. De imediato, sabe-se que a prisão é o resultado de uma longa trajetória de mudança de mentalidade e de legislação. “Se em uma outra ocasião acontecer algo parecido, dificilmente não culminará em punição”, acredita o cientista político Fabio Wanderley, da Universidade Federal de Minas Gerais. A ressalva a ser feita é o caráter da prisão de Arruda: uma decisão cautelar, para interromper pressões a testemunhas e impedir possível obstrução do processo criminal. Na prática, nem mesmo o episódio do Distrito Federal se resolve com a prisão do governador. “O que mais fomenta a sensação de impunidade é o fato de nem sempre os processos chegarem ao final”, lembra o filósofo Renato Janine, da Universidade de São Paulo. “O ponto crucial é julgar de forma rápida e justa para que a sociedade conheça o final da história.”

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Essa também é uma das preocupações da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que, ainda em 2007, deflagrou uma campanha para o combate à corrupção no País. Entre as iniciativas tomadas pelos juízes está um pedido encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça para que fosse dada prioridade aos processos envolvendo atentado contra o erário público. “A sociedade não suporta tanta corrupção nem tanta impunidade”, diz o presidente da associação, Mozart Valadares Pires. “É preciso dar uma sentença rápida para aqueles que roubam cada vez mais descaradamente.”

As decantadas conexões de políticos brasileiros com atos ilegais são tamanhas que enriqueceram até a língua portuguesa. Ex-governador e ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, por exemplo, contribuiu inspirando o termo “malufar”. Maluf, por sinal, é considerado herdeiro político do ex-governador Ademar de Barros (1901-1966), conhecido pelo slogan “rouba, mas faz”. Ao contrário de Ademar, que chegou a fugir do País para escapar da prisão nos anos 1950, Maluf passou 41 dias atrás das grades, em 2005. Como Arruda, foi acusado de tentar barrar o depoimento à Justiça de uma testemunha de acusação.

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A simples leitura dos autos contra Maluf demonstra por que o Brasil tem dificuldade para se livrar da corrupção. Acusado de desviar recursos das obras da avenida Águas Espraiadas e do túnel Ayrton Senna no segundo mandato como prefeito da capital (1993-1997), entre outras estratégias de defesa, ele arrolou testemunhas de antecedentes que vivem no Líbano. Como esse tipo de depoimento depende de tratados de cooperação internacional, os depoimentos não chegaram à Justiça brasileira até hoje. Mesmo em casos de países que têm acordo firmado com o Brasil, testemunhos do gênero costumam levar de três a quatro anos para ser concluídos.

Para o promotor de Justiça Sílvio Marques, que atuou no caso de Maluf e também no do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, a qualidade das provas produzidas pela polícia e pelo Ministério Público é essencial para o combate à corrupção e à impunidade no Brasil. O próximo passo, defende Marques, está nas mãos do Legislativo. “É preciso modificar os procedimentos do processo e agilizar a Justiça, tanto no âmbito criminal quanto civil, para que a situação de impunidade faça parte do passado do País”, afirma o promotor. “Podem ser criadas fórmulas para evitar as chamadas chicanas, os subterfúgios que alguns advogados usam para prolongar o processo.” Este é um bom momento para o Brasil se debruçar sobre um problema que há séculos sangra seus cofres públicos. O País já perdeu outras oportunidades para estancar o ciclo vicioso da corrupção e da impunidade, como durante as investigações que culminaram com o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Como já deixou passar outras chances, é difícil acreditar que não vai deixar escapar esta. Mas não custa torcer.

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Colaboraram: Fabiana Guedes, Natália Leão e Solange Azevedo