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Governo legaliza o uso religioso do chá do Santo Daime, assunto de capa da IstoÉ desta semana. Assista à versão em vídeo da reportagem

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Alucinógeno
O chá ayahuasca é parte dos rituais de várias religiões nativas brasileiras

Tudo começou no início do século passado, no coração da Amazônia. Caboclos nordestinos atraídos pela extração da borracha mergulharam na cultura secular dos povos da floresta, inevitavelmente absorvendo muito de sua essência. Logo nasceram as chamadas religiões ayahuasqueiras, grupos em sua maioria cristãos que incorporaram o consumo de um chá alucinógeno utilizado pelos indígenas em seus rituais. Hoje, essas mesmas seitas estão no centro de uma polêmica que envolve questões delicadas e perigosas, como o respeito à liberdade de crença, tráfico de drogas e morte.

No dia 25 de janeiro, em resolução publicada no “Diário Oficial da União”, o governo brasileiro oficializou o uso religioso do chá ayahuasca – também conhecido como daime, hoasca e vegetal. Sem força de lei, o texto, formulado depois de décadas de negociações e estudos realizados pelos órgãos de combate às drogas, define as responsabilidades das religiões institucionalizadas e garante o direito de consumo do alucinógeno a adultos, mulheres grávidas, jovens e até crianças durante os rituais. Por outro lado, ele veta a comercialização e a propaganda do composto feito a partir do cipó mariri e das folhas da erva chacrona, além de sugerir que qualquer tentativa de turismo motivado pelo chá seja coibida.

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Personagens
Flávio Mesquita da Silva, presidente da União do Vegetal. Acima, a oferta do daime na web para fins recreativos.
Abaixo, Fernando Tavares, morto depois de tomar o chá

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A decisão do governo repercutiu com força. Políticos como Eduardo Suplicy e Fernando Gabeira, por exemplo, defendem a medida. “A resolução é o reconhecimento de uma religião autenticamente brasileira”, diz Suplicy. Por outro lado, outras vozes levantaram a hipótese de que a liberação do daime poderia abrir o perigosíssimo precedente para a criação de religiões que incorporem drogas como a cocaína e a maconha em seus rituais. E ainda há quem considere o trabalho desenvolvido pela comissão multidisciplinar – composta por médicos, juristas, psicólogos e membros de religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal, entre outros especialistas – do Conad (Conselho Nacional Antidrogas) um exemplo de respeito aos direitos individuais a ser exportado para o mundo. Porém, o noticiário indica outra direção.

No penúltimo final de semana, Alexandre Viana da Silva, 18 anos, morreu afogado em um lago em Ananindeua (PA), depois de tomar o chá em um culto independente. Claro que não é possível afirmar que o alucinógeno levou o rapaz, que não sabia nadar, a enfrentar uma situação de risco sem medir as consequências. Mas a hipótese não pode ser ignorada.

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Outra história contundente é a de Fernando Henrique Queiroz Tavares. Aos 15 anos, ele era usuário regular de haxixe, LSD e ecstasy. Depois de muito sofrimento, encontrou ajuda na chácara Céu de Krishna, sede da seita Encantamento dos Sonhos, localizada na região metropolitana de Goiânia (GO). Lá, participou de rituais que envolviam o consumo de ayahuasca durante três anos. “Ele deixou o vício, voltou à escola e até parou de sair à noite”, diz sua mãe, Neila Maria Queiroz. Ela foi duas vezes até a chácara. Na primeira, para assistir a uma das cerimônias. Depois, para alertar a todos que Fernando Henrique sofria da síndrome de Marfan, enfermidade degenerativa do coração.

Por volta das 4h30 da manhã do dia 15 de novembro do ano passado, depois de consumir 150 ml do chá em um intervalo de quatro horas e meia, o rapaz de 18 anos sentiu-se fraco, apresentou dificuldade para respirar e caiu no chão. Segundo seu atestado de óbito, a morte foi causada por um ataque fulminante do coração, com rompimento da artéria aorta. Apesar de o laudo oficial com a causa do ataque só ter previsão de publicação daqui a dois meses, o que a ciência já sabe sobre os efeitos da ayahuasca no organismo indica forte possibilidade de relação entre o consumo do chá e o ocorrido. “Estamos realizando análises sofisticadas e fora do padrão. Precisamos de mais tempo”, afirma Rejane Sena Barcelos, diretora do Instituto de Criminalística Leonardo Rodrigues. Segundo o delegado que cuida do caso, Maurício Massanobu Kai, “se o chá facilitou ou potencializou a morte, o responsável pelo ritual responderá por homicídio doloso”. O delegado fala de Marcelo Henrique Ribeiro, líder do ritual Encantamento dos Sonhos. “Foi como perder um filho”, diz Ribeiro.

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Ritos e normas
Acima, culto da igreja Céu da Lua Cheia, em São Paulo.
Abaixo, o presidente do Cefluris, Alex Polari, participa do feitio do daime

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Segundo a nova normatização das regras do uso religioso da ayahuasca, as seitas cadastradas pelos órgãos passam a ser totalmente responsáveis pelo que acontece com seus adeptos durante os rituais. Cabe a elas decidir quem está apto ou não, tanto do ponto de vista médico quanto do psicológico, a tomar o chá. Também não há regras de dosagem: quem serve a bebida decide quanto o usuário deverá ingerir. Por fim, a determinação recomenda que todos os participantes permaneçam nas igrejas até o final dos rituais – e dos efeitos alucinógenos do chá.

Não é preciso dizer que o risco de algo dar errado é alto, o que pode transformar o caso em uma questão de saúde pública. Se alguém que começa a frequentar uma academia de ginástica é obrigado a passar por avaliação médica, o mesmo não deveria ser feito por quem consome um alucinógeno? “Assim como em se tratando de qualquer instituição desportiva, de ensino ou recreativa, quem quer que dê causa, por negligência, imprudência ou imperícia, ao prejuízo alheio responderá civil e criminalmente pelos atos que praticar”, diz Paulo Roberto Yog de Miranda Uchôa, secretário nacional de Políticas sobre Drogas e secretário executivo do Conad.

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Simbolismo
Acima, despacho do daime na igreja Céu da Lua Cheia. Abaixo, detalhe da produção do chá
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O texto publicado no “Diário Oficial” recomenda que as entidades façam uma entrevista com aqueles que forem ingerir o chá pela primeira vez e evitem seu uso por pessoas com transtornos mentais e por usuários de outras drogas. Segundo Enio Staub, secretário do Cefluris – Culto Eclético da Fluente Luz Universal Patrono Sebastião Mota de Melo, que reúne as igrejas conhecidas como Santo Daime –, esse primeiro contato é fundamental. “As pessoas que buscam a ayahuasca devem obter informações da origem dos grupos para verificar sua confiabilidade. Temos essa responsabilidade”, diz.

O Santo Daime ganhou notoriedade nos anos 80, quando chegou aos centros urbanos do Sudeste e do Sul do País. Celebridades como Lucélia Santos e Ney Matogrosso entraram para a seita e o perfil de seus seguidores mudou. Era a vez das classes mais abastadas, universitários e todo tipo de profissional entrarem na história. Paralelamente, a União do Vegetal também cresceu rapidamente. Hoje, segundo dados fornecidos pelas duas instituições, o Santo Daime conta com cinco mil associados e visitantes, enquanto a UDV contabiliza cerca de 15.000 sócios. Ambas estão presentes em países como Estados Unidos, Espanha, Reino Unido e Canadá, nos quais, segundo os religiosos, o chá entra de forma totalmente regular. “Não corremos atrás das pessoas. Elas vêm até nós”, diz Flávio Mesquita da Silva, presidente da União do Vegetal.

PARTE 2


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