"Davi rapidamente correu para o campo de batalha, levou a mão à sua bolsa e pegou uma pedra. Ele a lançou, atingindo o filisteu Golias na cabeça. A pedra afundou profundamente em sua testa, e ele caiu com seu rosto no chão. Davi prevaleceu sobre o filisteu apenas com uma funda e o matou.” A narrativa bíblica sobre o confronto do menino que abateu o gigante é uma das mais conhecidas das escrituras, porém certamente uma mentira roubada dos feitos de outro soldado, de acordo com o livro “Davi – A Vida Real de um Herói Bíblico” (Zahar). Recém lançada no Brasil, a obra ameaça aniquilar o mito ao afirmar que o Davi histórico não foi o homem bom e justo que ficou registrado à posteridade, mas um assassino, um bandoleiro e um traidor de seu país. O jovem heróico ficaria famoso ainda por escrever o livro dos Salmos, unificar o reino e dar origem à dinastia que governaria os hebreus, sendo antepassado direto do messias. É uma figura tão importante que, quando os judeus refundaram Israel após a 2ª Guerra, decidiram colocar seu símbolo, a estrela de Davi, na bandeira nacional. “Na realidade, ele foi um canalha, e pelos padrões atuais estaria mais para ditador do 3º mundo”, disse à ISTOÉ o autor da pesquisa, Joel Baden, professor da Universidade de Yale especialista em estudos bíblicos. “Mesmo em sua própria época, foi considerado culpado de crimes horríveis. Davi foi um monarca bem sucedido, mas um ser humano vil.”

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CARNE E OSSO
Davi ganhou ares de herói, mas não fazia jus à imagem eternizada por Michelangelo

Na obra, Baden defende que nossa noção sobre Davi é equivocada porque quase tudo que sabemos sobre ele vem da Bíblia. O problema é que as escrituras misturam fatos históricos com propaganda política. O autor argumenta, por exemplo, que o Davi da vida real foi apenas competente em combate, mas que nas escrituras aparece como militar de capacidade ímpar. Homem de armas, foi alçado ao posto de poeta autor dos Salmos, um dos livros mais declamados da Bíblia, mas as passagens contêm referências a acontecimentos posteriores à sua morte. Além disso, para que a luz do herói brilhasse ainda mais foi preciso deixar de lado seu antecessor, Saul. O fato, no entanto, é que o jovem Davi usurpou o trono de Saul vendendo sua lealdade aos inimigos filisteus, o povo de Golias. Com isso, lutou contra seu próprio exército e esteve envolvido na morte de seu rei. “Soa como traição e provavelmente era mesmo”, afirma Baden.

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De acordo com o estudo, Davi cometeu crimes antes e depois da realeza. Na época de exilado no deserto, atuava como bandoleiro cobrando por proteção (contra ele mesmo, que fique claro). Como monarca, assassinou não só toda a linhagem de Saul, mas até seu próprio primogênito (que se rebelou contra o pai). Exterminou os jebuseus, antigos habitantes de Jerusalém, o que Baden classifica como genocídio, e sequer era amado pelos hebreus. E não para por aí: duas das mulheres mais importantes da vida de Davi, Abigail e Betsabá, só viraram suas esposas depois que ele matou os respectivos maridos para ficar elas. Por sinal, Baden acredita que Salomão, seu herdeiro, oficialmente filho de Davi e Betsabá, pertenceria de fato ao falecido cônjuge. Acatar a hipótese implica aceitar que Davi não deixou descendentes biológicos, portanto não poderia ser antepassado do messias.

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Baden analisa o texto bíblico separando, nas passagens, fato de ficção. Formula conclusões a partir daí baseado naquilo que se sabe do período. Mas o método encontra resistências. Professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo, o arqueólogo Rodrigo Silva diz que o pesquisador frequentemente mistura reconstrução com especulação. “Um exemplo: como saber que Salomão não é filho de Davi? Mesmo hoje é difícil definir paternidade. Para fazer uma afirmação dessa é preciso evidências muito fortes, que ele não tem.” Segundo Baden, existem dois Davis: o da imagem que nós criamos e o que de fato existiu. “Meus argumentos serem aceitos ou não é menos importante do que fazer com que as pessoas entendam a distância entre a fé e a realidade histórica”, diz.