No início do mês, a Controladoria-Geral da União (CGU) atingiu um número simbólico: fiscalizou os repasses de recursos federais em 30% dos municípios brasileiros, algo próximo a 1,6 mil pequenas cidades, com menos de 500 mil habitantes. Individualmente, os relatórios enviados pelos fiscais da CGU mostram casos de corrupção barata espalhados por todo o País, mas, quando observados em conjunto, desenham um cenário sombrio.

De acordo com o levantamento do órgão fiscalizador do Poder Executivo, 95% das cidades visitadas pelos agentes da CGU apresentam problemas na administração dos recursos federais que lhes foram repassados nos últimos anos. Esses problemas, na maior parte dos casos, são na verdade indícios de malversação do dinheiro público, que muitas vezes se traduz em licitações fraudadas, comprovação de gastos com notas frias e falsas ou na apropriação pura e simples de recursos por parte dos agentes municipais. Apesar de pequenas, essas cidades receberam R$ 11 bilhões apenas de programas ligados aos ministérios nos últimos seis anos.

Os dados da CGU explicitam um fato importante que muitas vezes passa despercebido pela vasta maioria dos brasileiros. Eles mostram que a corrupção que drena bilhões de reais dos cofres públicos nem sempre está ligada a números grandiosos. Em geral, quando a roubalheira vem à superfície traz consigo escândalos envolvendo figurões da política, máfias bem estruturadas e grandes empresas que vivem e se alimentam de esquemas de favores que se perpetuam há décadas em um país onde o público e o privado insistem em se confundir.

Remédios superfaturados

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Na cidade de Paulínia (SP), os fiscais da CGU constataram que o município, sob o comando do ex-prefeito Edson Moura (foto), pagava R$ 335 mil a mais todos os meses por um lote de cerca de 300 remédios. A cidade fechou um contrato de fornecimento de medicamentos com um sobrepreço de 193%. As contestações do município não foram aceitas pela CGU

Mas os casos que ganham as páginas dos jornais e inflamam os ânimos da oposição e do governo – a depender dos acusados – são apenas a porta de entrada de um sinuoso e obscuro labirinto que se enraíza até as camadas mais profundas do Estado. É por meio desses caminhos tortos, distantes dos olhos da opinião pública, que um exército de prefeitos, secretários municipais, pequenas empresas e agentes do poder público de toda sorte se aproveita da incapacidade do Estado em fiscalizar seus recursos para roubar o dinheiro que deveria ser usado na construção de um país mais justo e moderno. É como a velha imagem de um iceberg antártico. Sob a ponta que flutua, se esconde uma massa com poder destrutivo muito maior do que aquela que os olhos podem ver.

O trabalho realizado pela CGU é pequeno quando comparado com o universo de brechas que os administradores públicos têm para fraudar o Estado. O órgão fiscalizador se atém apenas aos recursos repassados pela União, e de forma que pode ser considerada até superficial. Os municípios são escolhidos por meio de sorteio e respeitando a proporcionalidade regional. Após selecionados, os fiscais da Controladoria passam cerca de duas semanas na cidade esquadrinhando os recursos transferidos pela União. "As prefeituras ainda recebem recursos estaduais, recolhem seus próprios impostos e não são fiscalizadas por quem deveria fazer isso, os Tribunais de Contas, que não têm capacidade técnica e muita influência política", diz Fábio Angélico, coordenador no País da Transparência Brasil, uma organização não governamental que atua no combate à corrupção em vários países "A situação nos municípios é simplesmente terrível."

Sem ar-condicionado

O município de Charqueadas (RS) não tem verão ao estilo senegalês, mas parte de sua população parece ter especial apreço por ar-condicionado. No final de 2008, a CGU descobriu que sete aparelhos de cerca de R$ 15 mil, adquiridos com recursos do Fundo Nacional de Saúde, desapareceram dos postos de saúde. A prefeitura não soube explicar o destino deles e nem de outros equipamentos sumidos, orçados em R$ 48 mil

Gasto sem provas


A Prefeitura de Oiapoque (AP) não se deu nem mesmo ao trabalho de falsificar notas fiscais. A cidade recebeu, entre 2005 e 2007, R$ 421 mil do Ministério das Cidades para construir um novo terminal rodoviário. No entanto, a administração municipal não provou à CGU como usou R$ 271 mil dos recursos. Não havia notas que justificassem os gastos. O caso foi encaminhado ao Ministério Público Federal do Amapá

A estratégia funcionou, mas não garantiu resultados permanentes. O novo prefeito, eleito em 2006, Rubens Gaiozo Jr., passou a adotar as mesmas práticas de seu antecessor. Novamente a ONG voltou à fiscalização, descobriu novos casos de corrupção e conseguiu cassá-lo, em 2007. "Pela experiência que adquirimos nesses processos, me arrisco a afirmar que 98% dos municípios brasileiros têm desvios de recursos públicos", diz Verillo. "Se não é o prefeito, são os secretários ou alguém da equipe. E isso acontece porque é muito fácil roubar dinheiro público no Brasil. Não há estrutura capaz de acompanhar o que acontece nos quase 5,6 mil municípios do País."

ONG do interior paulista conseguiu cassar dois prefeitos corruptos em cinco anos

LUPA Para Josmar Verillo, o cidadão precisa fiscalizar

Verillo advoga pela mesma tese do ministro Jorge Hage: sem apoio da sociedade civil é praticamente impossível combater essa corrupção em contagotas que assola todo o País. "Não tem jeito: ou você tem um grupo de cidadãos acompanhando a prefeitura de perto ou haverá corrupção", diz o executivo. Sua opinião é quase consenso entre as entidades que combatem a corrupção no País. "Só a atenção e a cobrança dos cidadãos podem aprimorar o controle dos gastos públicos. É utopia crer que esse papel caiba ao Estado de forma exclusiva", diz Augusto Miranda, vice-presidente do Instituto de Fiscalização e Cidadania (IFC).

Criado em 2005 em Brasília, o IFC trabalha no incentivo à criação e apoio a ONGs destinadas a fiscalizar o poder público municipal. Hoje são 100 entidades apoiadas pelo instituto, que, além de treinar seus integrantes, oferece ferramentas para um controle mais efetivo das contas dos municípios brasileiros. "Mas a verdade é que não basta vontade e dedicação, é preciso também força política e econômica para se contrapor ao poder público, que em regiões pobres é o mantenedor de quase toda a população", diz Miranda.

ESTRUTURAL Rassier, da ABM: "O Estado precisa mudar para coibir a corrupção"

Não são todas as cidades brasileiras que dispõem de um executivo com experiência internacional, com passagens pela presidência de uma multinacional, co mo é o caso de Jos mar Verillo. São poucos também os municípios que podem contar com profissionais qualificados que consigam entender a complexa contabilidade pública.

No fundo, esperar que um país em que 30 milhões de pessoas cruzaram a linha que os separava da pobreza extrema há poucos anos tenha uma rede de fiscalização formada pela sociedade civil é quase uma utopia. E a corrupção que assola os pequenos municípios é a força motriz de um círculo vicioso que retroalimenta as máfias, os prefeitos, as empresas, enfim, os criminosos de toda sorte que se aproveitam da incapacidade do Estado em fiscalizar seus recursos.

A CGU não está mudando a estrutura do Estado e, na verdade, o amplo trabalho que vem fazendo tem poucos resultados práticos. Até agora, cerca de 400 ações já foram ajuizadas pelo Ministério Público Federal com base nos relatórios do órgão e algo perto de 450 processos judiciais teve o mesmo destino por decisão da AdvocaciaGeral da União. Mas isso não significa muita coisa, como mostrou ISTOÉ em janeiro deste ano ao relatar alguns casos de corrupção apontados pela CGU. A Controladoria só pode tomar decisões administrativas contra os funcionários do Executivo. Prefeitos, vereadores e funcionários públicos estaduais e municipais, em última instância, só podem ser punidos pela Justiça. "E aí está um grande problema: o sistema judicial brasileiro é moroso demais", diz o ministro Jorge Hage. "É um absurdo, mas não há muito que possamos fazer."

5 toneladas de elástico

São Francisco do Conde (BA) é, talvez, a maior consumidora per capita de elásticos para enrolar dinheiro do País. Em 2002, a Secretaria de Educação da cidade comprou cinco toneladas de elástico para dinheiro, algo como 4,3 milhões de pedacinhos de borracha. A CGU, no entanto, não conseguiu achá-los nas escolas do município, que também receberiam, de acordo com as compras com recursos do Fundef, 36 mil pincéis atômicos

Hage não aceita as afirmações de que a Controladoria desempenha um papel muito mais simbólico do que efetivo. Para ele, um dos objetivos do programa de fiscalização dos municípios é também criar uma espécie de cultura do medo entre os administradores públicos. "Isso está acontecendo. Há um temor nas pequenas cidades e esse também é um dos nossos objetivos", diz. Mas ele concorda que não serão visitas de duas semanas de alguns fiscais federais que irão transformar a realidade do País."O universo de mais de cinco mil municípios é grande demais. É preciso que a sociedade civil entre nessa luta, sem ela a fiscalização sempre será deficitária", diz Hage.


Mas fiscalizar municípios pequenos, que não divulgam suas informações e exercem poder político e econômico na vida da maior parte de seus moradores, não é exatamente uma tarefa fácil. Além das dificuldades em obter as informações, é preciso também conhecimento técnico para decifrar os herméticos relatórios de prestação de contas. Algumas experiências têm dado resultado, mas são casos isolados.

A mais bem-sucedida delas ocorreu no município de Rio Bonito, no interior de São Paulo. Um grupo de amigos nascidos na cidade e liderados pelo então presidente da Klabin, Josmar Verillo, formou uma ONG para apresentar projetos à prefeitura e trabalhar na captação de recursos para executá-los.

Em pouco tempo perceberam que, apesar da boa arrecadação, nada acontecia. "Vimos que não adiantava nada nosso esforço porque tudo que entrava na prefeitura era desviado de alguma forma", diz Verillo, hoje presidente da usina Santa Cândida. "Decidimos mudar nosso foco de atuação e começamos a fazer um trabalho de fiscalização rigoroso nas contas municipais." Dois anos depois, em 2002, a ONG batizada de Amarribo conseguiu cassar o prefeito Sérgio Antônio Buzar, que depois foi condenado pela Justiça e só foi detido em Rondônia após um longo período foragido.

Os relatórios da CGU mostram que a prática de desviar recursos públicos nas pequenas cidades brasileiras é tão disseminada quanto a certeza da impunidade por parte dos criminosos. As fraudes grosseiras se repetem às centenas e explicitam uma falta de responsabilidade assustadora com o dinheiro dos contribuintes. Em alguns casos, os métodos utilizados pelos administradores públicos para desviar os recursos por pouco não ultrapassam a fronteira do absurdo. "O criminoso do colarinho-branco sabe que, se for pego e condenado, só será punido em dez anos, talvez 20 anos", diz o ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, Jorge Hage. "Esse absurdo criou uma sensação de impunidade que é ainda mais acentuada nos pequenos municípios."

Cidades fiscalizadas pela CGU receberam R$ 11 bilhões em repasses federais

Foi provavelmente com essa certeza que os responsáveis pela Secretaria de Obras da pequena e isolada cidade de Boa Vista de Ramos, no meio da amazônia brasileira, sacaram mais de R$ 730 mil da conta da prefeitura oito dias antes do fim do mandato do prefeito eleito em 2002. Os recursos advindos do Ministério das Cidades seriam usados na construção da primeira estação de tratamento de esgoto do pequeno município de 13 mil habitantes. O dinheiro só deveria sair da conta quando a empresa vencedora da licitação desse início às obras. Mas não foi o que aconteceu. Quando os fiscais da CGU chegaram à cidade, o local onde a estação deveria estar instalada estava ocupado por cinco casas. Nenhuma delas tinha sequer um rudimentar sistema de saneamento.

IMPUNIDADE Ministro Jorge Hage critica a morosidade do Judiciário

Na cidade de Casa Nova, localizada no norte da Bahia, os fiscais da Controladoria descobriram um caso tão ou mais emblemático dessa corrupção que ninguém vê. Por meio de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), a prefeitura autorizava a agência do Banco do Brasil local a quitar dívidas pessoais de cidadãos que nem ao menos tinham relação direta com o poder público. Ao todo, Casa Nova gastou R$ 478 mil que deveriam ser investidos nas escolas da cidade para quitar as dívidas de 18 pessoas que haviam contraído empréstimos no banco por meio do crédito direto ao consumidor.

Os dois casos explicitam também a fragilidade dos sistemas de controle do Estado. É inacreditável que o saque de quase R$ 1 milhão e o pagamento de dívidas pessoais com recursos da educação só sejam descobertos em uma operação especial. A própria Controladoria não faz ideia de quando os fiscais voltarão a essas cidades. Ainda faltam quase quatro mil municípios para ser fiscalizados e, provavelmente, novas irregularidades só surgirão naqueles que passaram pelo crivo do órgão por razões pontuais. "O fato é que sob o ponto de vista da concepção estrutural do Estado brasileiro seria necessário repensar a federação para que medidas efetivas de combate à corrupção fossem aplicadas", diz o secretário-geral da Associação Brasileira de Municípios, José Carlos Rassier.


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