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O que leva um magistrado que ganha mais de R$ 100 mil mensais a associar seu nome ao crime organizado? Essa é uma das perguntas que duas investigações, conduzidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e pela Procuradoria-Geral de Justiça do Estado, tentam responder. O suspeito é o desembargador Otávio Henrique de Sousa Lima, 67 anos, que foi afastado no fim de setembro de suas funções no TJ por liberar Welinton Xavier dos Santos, o “Capuava”, considerado o maior traficante do estado de São Paulo. A conexão entre o desembargador e o bandido foi detectada após a polícia paulista fazer a maior apreensão de entorpecentes do ano, em julho. Foram 1,6 tonelada de cocaína achada num sítio que servia como refinaria na cidade de Santa Isabel. Também foi encontrado no local um extenso aparato para produção de drogas e um arsenal contendo uma pistola e quatro fuzis de calibre pesado, capazes de derrubar até helicópteros. Cinco pessoas foram presas, entre elas Capuava. Diante das evidências, não seria de se espantar se os envolvidos fossem condenados e ficassem na cadeia por muito tempo, mas menos de 20 dias depois Sousa Lima aprovou um habeas corpus permitindo que o suspeito respondesse às acusações em liberdade. A decisão foi revertida depois, mas o traficante já havia fugido. De acordo com o Órgão Especial do TJ, o desembargador não justificou adequadamente sua decisão, está envolvido em outras liberações contestáveis de traficantes e recebeu a liminar através de um número falso, o que indica a existência de um esquema envolvendo funcionários da corte. “Não vamos julgar com corporativismo. Cortaremos na própria carne se necessário”, diz Hamilton Elliot Akel, Corregedor-Geral da Justiça paulista e membro do Órgão Especial que cuidará do caso. Apesar do afastamento e da investigação em vários órgãos, Sousa Lima continua recebendo seu gordo salário. Em agosto, foi de R$ 97 mil.

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HISTÓRICO
Sousa Lima (acima) já liberou alguns traficantes com habeas corpus de
forma duvidosa. Ao lado, o apartamento de Moema e o iate Brunello

Juiz discreto e com um círculo pequeno de amigos, o desembargador investigado é casado, tem quatro filhas entre 25 e 42 anos e está a pouco mais de dois anos da aposentadoria. As acusações causaram surpresa entre os pares porque ele vem de uma família tradicional no direito. O pai foi desembargador e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e o irmão é desembargador aposentado. Neste ano, entre salário e benefícios, sua remuneração flutuou entre R$ 52 mil e 102 mil líquidos por mês. A Procuradoria-Geral já pediu ao Tribunal de Justiça uma lista completa dos bens de Sousa Lima a fim de investigar se seu modo de vida é compatível com o que ele recebe. O desembargador tem em seu nome um imóvel na capital paulista, uma residência de veraneio e outra na região serrana. Mora desde 2003 num apartamento de 166 metros quadrados em Moema, área nobre de São Paulo, hoje estimado em cerca de R$ 1 milhão. Além disso, é dono, desde 1999, de uma casa na cidade litorânea de São Sebastião (SP), com área total de 520 metros quadrados, e há oito anos costuma passar temporadas com a família num apartamento próprio em Campos do Jordão (SP). Sua verdadeira paixão, porém, são as embarcações. Possuía uma pequena lancha, que vendeu para comprar em 2013 o iate Brunello, por R$ 600 mil. O custo de manutenção está por volta dos R$ 4 mil mensais.

As suspeitas contra o desembargador se fortaleceram quando foi descoberto que o habeas corpus, que deveria ser distribuído aleatoriamente entre os juízes da tribunal, foi encaminhado para ele de propósito, através da inserção de número falso no sistema, pelo funcionário Paulo Roberto Sewaybriker Fogaça. Na sessão que marcou o afastamento, o presidente do TJ, José Renato Nalini, mencionou outros casos semelhantes que passaram pela mão de Sousa Lima e considerou “extrema coincidência” que vários pedidos de liberdade de traficantes fossem encaminhados a ele. Alguns habeas corpus foram dados em plantões de fim de semana, o que segundo Nalini contraria os ritos da corte. Também classificou a justificativa dada para soltar Capuava de “genérica”, “defeituosa” e “capenga”. Seu voto foi seguido por unanimidade pelos magistrados do Órgão Especial.

As acusações surgem num momento em que o TJ é bombardeado por denúncias de favorecimento a criminosos. O promotor Cássio Conserino apura esquema semelhante que visava beneficiar membros de uma facção criminosa. A quadrilha pode envolver outro desembargador (já aposentado), três advogados e dois funcionários – um deles é Sewaybriker Fogaça. O advogado de Sousa Lima disse que o perfil moderado de seu cliente fez com que as liminares fossem encaminhadas para ele (leia quadro). Caso condenado pelo Órgão Especial, o desembargador será forçado a deixar a função ou a se aposentar compulsoriamente. Nos dois casos, continuará recebendo. Quem será punido? 

“É SEMPRE ASSIM”

Em entrevista exclusiva à ISTOÉ, advogado de Sousa Lima diz que justificativa dada por magistrado é comum nos tribunais

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LIVRE
Considerado o maior traficante do estado de São Paulo, Capuava não ficou
nem vinte dias na cadeia após ser pego com 1,6 tonelada de cocaína

ISTOÉ – Por que o desembargador Otávio Henrique de Sousa Lima liberou o traficante?
Marcial Hollanda –
Naquele momento não existiam elementos objetivos contra o Capuava, preso num Del Rey um quilômetro antes de chegar ao sítio onde estavam as drogas. Só depois da decisão a perícia apontou um fundo falso no veículo com resquícios de cocaína.

ISTOÉ – Sousa Lima recebeu dinheiro dos bandidos?
Hollanda –
O único bem de valor que ele tem é o barco, que comprou com o dinheiro recebido de uma herança. Possui ainda três apartamentos, todos declarados. Ele não foi nem viajar por causa da alta do dólar. Uma pessoa dessas não está recebendo de criminosos.

ISTOÉ – O processo foi distribuído com um número falso para o desembargador, que soltou o traficante. Foi coincidência?
Hollanda –
O funcionário pode ter recebido para dirigir a distribuição para ele, que tem perfil mais liberal. Quem é da área sabe que esses direcionamentos acontecem.

ISTOÉ – Os próprios colegas afastaram-no, por unanimidade, pela liberação de suspeitos em plantões e por não justificar os habeas corpus.
Hollanda –
Não há nada que o impeça de decidir durante plantões. Quanto às justificativas, a recomendação é que não se alongue muito nesses casos. É só abrir o Diário Oficial para ver que é sempre assim.