Morador de uma cidade próxima da capital Damasco, o sírio R.H., de 30 anos, viu amigos serem executados por franco-atiradores e assistiu a pessoas serem comidas por cachorros nas ruas, em meio à guerra que destrói seu país. Para fugir desse horror, decidiu cruzar as fronteiras no ano passado. Escolheu como destino o Brasil, país que, segundo tinha ouvido falar, facilitava a entrada de refugiados. Mas, chegando aqui, R.H percebeu logo que não havia qualquer política pública de ajuda a imigrantes como ele. As facilidades oficiais se resumiam às portas abertas na entrada.

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REDE
Xeique Mohamed Al Bukai, na mesquita de Santo Amaro, em São Paulo,
auxilia os sírios que chegam ao País com emprego e educação para as crianças

O sírio R.H. não recebeu orientação de como regularizar a documentação, procurar emprego ou encontrar moradia, por exemplo. Desesperado, o muçulmano buscou acolhida nos braços da católica Missão Paz, em São Paulo. Coordenada pelo padre Paolo Parise, a organização é uma das várias instituições religiosas espalhadas pelo País que, na ausência do Estado, têm estendido as mãos para esses estrangeiros, pessoas fragilizadas, que deixaram família, trabalho e tradições para trás na esperança de recomeçar em uma cultura totalmente desconhecida e estranha à sua. “O Brasil é um dos países mais acolhedores, porém o que menos possui políticas sociais para integrar essas pessoas”, diz padre Ubaldo Steri, ex-diretor da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, que acolhe imigrantes há 26 anos.

Apesar de o Brasil ter assinado a Convenção das Nações Unidas de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados e ter sua própria lei do refúgio em 1997, que garante documentos básicos como carteira de identidade e de trabalho e acesso a todas às políticas sociais, muitos refugiados desembarcam em cidades brasileiras à mercê da própria sorte. “Existem apoios ocasionais, mas para moradia e trabalho não há um programa concreto”, afirma o padre Ubaldo. Recentemente, a presidente Dilma Rousseff reafirmou o compromisso do Brasil com a acolhida dessa população. Em 2013, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) aprovou facilidades para a chegada de sírios no País por razões humanitárias. Com a medida, deixou de ser necessária a apresentação de documentos que comprovassem emprego fixo ou condições financeiras para permanecer no Brasil. A regra vale até o fim do mês, mas o governo quer prorrogar o benefício.

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Em São Paulo, diversos líderes religiosos atuam para fazer o trabalho que o Estado não faz na recepção dos estrangeiros. Padre Paolo, da Missão Paz em São Paulo, é um dos quatro religiosos que convivem com os imigrantes. Ele participa da administração da Casa do Migrante, espaço destinado ao recebimento de 110 pessoas que chegam ao País sem conhecidos ou familiares. Aqueles que têm onde ficar recorrem à Missão Paz para regularizar a documentação e se candidatar a empregos. “Como temos parcerias com algumas empresas e oferecemos cursos profissionalizantes e de idiomas, a procura é intensa.” Como o fluxo de refugiados aumentou muito no último ano, os recursos das entidades religiosas podem ser insuficientes. Segundo o padre Paolo, a Congregação Scalabriniana destina anualmente R$ 870 mil para o trabalho de acolhida em São Paulo. “Vamos ter que ir atrás de outros parceiros”, diz. A Missão Paz não tem convênio com nenhum governo. “Há alguns anos a prefeitura tratava o imigrante como morador de rua, colocando-o em albergues. É preciso uma política diferenciada”, diz o sacerdote. Também em São Paulo, o xeique Mohamed Al Bukai, de 37 anos, se dedica desde 2013 a receber os sírios que chegam ao País desamparados. Com o aumento da procura, nasceu há dois meses o projeto Oásis. Em um prédio de cinco andares, no centro da cidade, equipes oferecem aulas de português e organizam doações. O xeique diz que a maior dificuldade dos sírios é a falta de moradia. “Conseguir um fiador é muito difícil, por isso acabam ficando em hotéis baratos ou pensões, casa de amigos ou em vagas que surgem em albergues.”

O religioso islâmico afirma que tudo é feito a partir de doações estimuladas por campanhas da União Nacional Islâmica. “A prefeitura, em parceria com o governo, deveria criar uma casa de imigrantes próxima ao aeroporto para receber esses refugiados”, diz. Mas enquanto isso não ocorre, o projeto Oásis procura melhorar o atendimento aos sírios com a criação de departamentos para cuidar da educação das crianças e da saúde dos refugiados. Em Belo Horizonte, Minas Gerais, outro religioso se tornou referência para os sírios. Com a ajuda da arquidiocese da cidade, o padre sírio George Rateb Massis, de 39 anos, oferece abrigo a 77 refugiados em uma casa matriz. “Lá damos espaço para dormir, cursos de português e alimentação, mas não temos ajuda do governo. Tudo que conseguimos é por meio de campanhas”, afirma Massis. Segundo ele, a arquidiocese tem parceria com imobiliárias e fiadores que ajudam a alugar apartamentos. O grupo de refugiados ocupa 16 imóveis na cidade e a igreja ajuda nas despesas de quem não conseguiu um emprego.

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Padre George acredita, porém, que o caminho para a integração dos refugiados ainda é longo. “Eles sofrem muito preconceito. Um rapaz sírio que trabalha em uma padaria foi agredido com um copo de café no rosto, acusado de roubar o trabalho de um brasileiro.” Em Brasília, a irmã Rosita Milesi, diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos, ligado à Congregação das Irmãs Scalabrinianas, trabalha há 16 anos com esse grupo de pessoas. “Acolhemos no momento emergencial da chegada e oferecemos condições básicas para a reconstrução de suas vidas”, diz ela. “É um trabalho para recuperar a autoestima e a confiança na possibilidade de viver em paz.” O instituto, que conta com recursos financeiros próprios, do governo federal e do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), auxilia com documentação, moradia temporária, aulas de português, recursos financeiros, emprego e escola para as crianças. Segundo irmã Rosita, o governo precisa avançar na política de proteção a essa população. “Os refugiados carecem de espaços de acolhida, acesso a todos os benefícios sociais e de um plano nacional de integração.”

Fotos: Murillo Constantino/Ag. Isoté