Você tem alguma lembrança dos seus 3 anos de idade? Provavelmente não. Aos 3, fantasia e realidade se misturam, pensamentos e ações têm a mesma força e o tempo passa em compassos mais lentos, permeado por momentos de descanso, afeto e brincadeira. Quando revolvemos nossa memória para essa época da vida, o que vem à mente é o amor que recebemos, traduzido num aroma, num toque, num som deliciosamente familiares. O pequeno e sorridente Aylan, 3, nasceu sob o signo da guerra e o barulho de bombardeios. Mas, alheio às bombas que castigavam seu país natal, a Síria, passava os dias a brincar, tendo como companheiro o irmão Galib, dois anos mais velho. Com tão pouca idade, já havia se mudado várias vezes com a família – o pai Abdullah Kurdi, 40, e a mãe Rihan, 35. De Damasco, em 2012, para Aleppo, depois para Kobani, até cruzar a fronteira da Turquia em 2014. Munido daquela segurança que só os muito novos conseguem ter, por completa inocência, entrou num bote na noite de terça-feira 1 em Bodrum, sudoeste da Turquia, com sua família. Nada poderia lhe acontecer. Afinal, os pais estavam lá para protegê-lo. Quinhentos metros e muitas remadas depois, a água começou a tomar conta da frágil embarcação e os pezinhos de Aylan ficaram encharcados. O pânico não demorou a dominar os adultos, que gritavam aterrorizados. O pai trouxe os filhos para si, em vão. A violência das ondas jogou para o fundo do mar Mediterrâneo o sonho dos Kurdi de chegar à ilha de Kos, na Grécia. E o menino que ainda não tinha construído seu repertório de lembranças jamais sairá da memória das pessoas que o viram, com sua roupa de passeio, sapatinhos ainda presos aos pés, vestido para começar uma vida nova, estendido sem vida na praia de Ali Hoca, na Turquia, na imagem que petrificou o mundo na quarta-feira 2.

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DESOLAÇÃO
Policial carrega Aylan, encontrado na beira-mar de uma praia turística da
Turquia na quarta-feira 2. Acima, o pai Abdullah chora a perda da família inteira

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Muitas análises foram feitas após a comoção gerada pela foto. Por que justamente a de Aylan causou tanta pertubação, se tantas outras imagens de crianças refugiadas mortas têm circulado, tão trágicas quanto? Uma das explicações é o cenário e a situação, que provoca uma identificação imediata. O menino, quase um bebê ainda, encontrado à beira-mar, um lugar onde as crianças podem brincar despreocupados. Sua posição, de bruços, dá a impressão de que ele apenas repousa, serenamente. Dá vontade de arrumar sua roupa, cobri-lo, protegê-lo do frio. Toda essa placidez inspirou uma série de desenhos, que circulam pelas redes sociais, em homenagem ao garoto (veja quadro). Enquanto as pessoas tentam digerir a imagem, o único sobrevivente dos Kurdi sabe que jamais esquecerá o que viveu. E o que perdeu. “Eu tentei pegar meus filhos e minha esposa, mas não havia esperança. Um por um eles morreram”, disse um devastado Abdullah. O pai amoroso, que era acordado na cama pelos filhos, convocando-o para brincar, guardou detalhes do horror pelo qual passou. “O desespero aumentava à medida que a água subia. Alguns ficaram de pé, e o bote virou. Eu segurava minha mulher com a mão. As mãos dos meus filhos se soltaram das minhas. Tentamos ficar no bote, mas quase não tínhamos ar. Comecei a empurrá-los para a superfície para que pudessem respirar, acho que estavam há umas três horas tentando sobreviver.” Alternando os cuidados de um filho e outro e impotente diante do iminente afogamento, Kurdi empurrou o mais velho para a mãe, para que ele pudesse, ao menos, manter a cabeça erguida. Horas depois, Rihan e Galib foram encontrados juntos, a poucos metros do caçula.

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Ao sair de Kobane, a cidade curdo-síria há meses assediada pelo Estado Islâmico (EI), os Kurdi tentaram chegar à Europa, pagando 2.050 euros (R$ 8.660) por pessoa para embarcar no fatídico bote. Mas o destino preferido da família era o Canadá, onde vive a irmã de Abdullah, a cabelereira Teema, moradora de Vancouver há 20 anos. Segundo ela, o Escritório de Cidadania e Imigração do Canadá recusou em junho o pedido de asilo de seus parentes. “Eu tentei financiá-los e meus amigos e vizinhos me ajudaram, mas não conseguimos retirá-los de lá, por isso subiram no bote”, disse a tia de Aylan, que pagava o aluguel para o irmão na Turquia. “Eles não mereciam morrer. Estavam indo para uma vida melhor. Isso não devia ter acontecido com eles”, disse a cabelereira, que contou que os dois sobrinhos haviam pedido uma bicicleta a ela há cerca de três semanas. “Pobrezinhos, nunca tiveram uma boa vida.”

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Aylan e Galib não foram as únicas crianças a morrer no mar naquela fatídica noite. Outra embarcação que fazia a mesma rota também sucumbiu, deixando oito mortos, entre eles uma bebê de 9 meses, gêmeos de um ano e meio e dois irmãos de 9 e 11 anos. Autoridades turcas teriam prendido na quinta-feira 3 quatro pessoas suspeitas de tráfico humano, que estariam envolvidas nas mortes. Sobrevivente do naufrágio que dizimou seus parentes mais próximos, Abdullah enterrou na manhã da sexta-feira 4 os filhos e a mulher em Kobane, de onde não pretende mais sair. Os planos de um futuro promissor naufragaram junto com sua família. 


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