No final dos anos 1960, o mexicano Carlos Santana estremecia multidões com o som agudo e penetrante de sua guitarra, acreditava que forças cósmicas governavam nossos destinos, praticava meditação, adorava ficar chapado, criticava o patriotismo de qualquer lado que ele viesse, defendia a paz como o único caminho e o amor como a salvação da humanidade. E, claro, cultivava um cabelão perfeitamente desalinhado.

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Em 2015, a guitarra de Carlos Santana continua atiçando muita gente por aí, mas ele se tornou um espécime em extinção. Santana é o último dos hippies. Descobre-se isso ao término da autobiografia “O Tom Universal”, recém-lançada no Brasil e que traz, em minuciosos detalhes, a trajetória de cinco décadas de um dos maiores guitarristas de todos os tempos – o 20º melhor, segundo ranking dos especialistas da revista americana “Rolling Stone”.

Tantos anos depois da loucura da década de 1960, Santana ainda é um místico que medita, acende velas para os anjos (que “realmente” vê por aí) e incensos para afastar energias sinistras. Ele continua achando que estamos conectados por uma vibração cósmica (é o “tom universal”, sabe?) e, embora tenha abandonado os alucinógenos sintéticos, defende os poderes libertários da maconha. As convicções políticas também não mudaram. Abomina, como antes, o patriotismo “tosco e pueril” e até hoje defende a paz e o amor como valores máximos a serem perseguidos. Não é bacana descobrir que ainda existe gente assim? Mergulhar no calhamaço de 600 páginas que cobre a vida deste hippie de 68 anos tem um lado purificador. O livro faz a gente esquecer a chatice do mundo atual.

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“Antes de Woodstock, eu já havia tocado chapado, de modo que tinha confiança
para ir em frente. Foi como aquela cena do filme ‘2001 – Uma Odisseia no Espaço’,
de (Stanley) Kubrick, quando o astronauta está ultrapassando Júpiter com todas
as luzes se movendo rapidamente – parecia que eu estava quase a ponto
de dar à luz a mim mesmo. Eu podia sentir a música nascendo
dentro de mim e escapando pelos meus dedos”

A história de Carlos Santana é uma viagem desde o começo. Filho de um mariachi que vivia em bares e prostíbulos, Santana nasceu em Autlán, uma pequena cidade em um vale cercado por colinas escarpadas. O pai se mandou de lá para viver em Tijuana. Um belo dia, a mãe decidir ir atrás dele, com quatro filhos pequenos. Chamou um vizinho que tinha carro (uma velharia que mal andava) e mentiu que o marido pagaria a carona quando chegassem. Foram 5 dias de estrada, boa parte em chão de terra, em noites dormidas sob as estrelas. Em Tijuana, a família descobriu que José, o pai, vivia com uma prostituta, mas Josefina, a mãe, a expulsou a tapas.

Santana aprendeu a tocar violino com o pai. Depois, guitarra. Aos 14, começou a ganhar uns trocados se apresentando em clubes de strip-tease de Tijuana. Foi aí que o jogo virou a seu favor. Para fugir do racismo nos Estados Unidos, negros americanos se bandearam para a cidade fronteiriça. Alguns eram músicos excepcionais. Santana dividiu palco nos clubes de strip com esses músicos – e aprendeu a tocar de tudo, principalmente blues. Ele era só um adolescente pobre, mas passou a juventude rodeado por mulheres nuas e guitarristas talentosos. “Foi aí que percebi que a guitarra poderia conversar com uma mulher”, escreveu. “Poderia fazer com que alguém que não era stripper começasse a tirar a roupa.”

Em meados dos anos 60, São Francisco, nos Estados Unidos, pulsava na onda psicodélica. Santana foi sozinho para lá e o rock nunca mais seria o mesmo. Eis aqui a melhor parte do livro, a que traz revelações sobre o período mais intenso da música americana. Conheceu lendas como Jimi Hendrix – e pirou com ele –, aprendeu o valor da disciplina com um gênio como B.B. King e conheceu o lado irascível do mito do jazz Miles Davis, que adorava humilhar músicos desajeitados. Santana assimilou tudo isso e incorporou, em sua guitarra, a pegada latina que só um mexicano filho de mariachi poderia ter.

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MUITO ALÉM DO ROCK
Em -Tom Universal- Santana escava lembranças dolorosas, como a
violência sexual sofrida na infância, o relacionamento difícil
com os pais e o abandono pela mulher que amava

E aí veio Woodstock. Na autobiografia, Santana teve a grandeza de atribuir a uma boa dose de sorte o sucesso que foi a sua apresentação. Ele chegou para o festival alguns dias antes, porque estava ali por perto, fazendo pequenos shows. Assim, não pegou os engarrafamentos que atrasaram diversas bandas. Como muitas não chegaram a tempo, acabou tocando doze horas antes do previsto. A essa altura, tinha tomado mescalina. Se você não viu o filme sobre Woodstok, vale a pena dar uma espiada no YouTube. Durante 45 minutos, um Santana possuído manuseou a guitarra como se ela fosse um ser vivo que precisava ser domado. É uma cena memorável. Ele diz que a verdadeira sorte foi o tempo bom. Pouco depois de sua banda sair do palco, uma chuva pesada desabou. Os integrantes do Grateful Dead levavam choques enquanto tocavam, porque a água provocava curtos nos equipamentos. Ofereceram alguns milhões de dólares para ele tocar em outras duas edições de Woodstock, mas Santana é um hippie de coração e recusou a oferta por considerar que o festival se tornara comercial demais.

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O livro não é apenas uma coletânea de aventuras musicais alucinantes. Pela primeira vez, o músico dá detalhes da ocasião em que foi molestado por um turista americano. Tinha só 11 anos. O maníaco ofereceu doces e brinquedos e o arrastou para “lugares sombrios.” O guitarrista também fala do inferno que foi crescer em um lar marcado pela violência, especialmente do pai, da dor de ser abandonado pela mulher que amava, da morte de amigos como Miles Davis. Mesmo se você não for um aficionado por rock, “Tom Universal” pode se tornar uma viagem imperdível conduzida por um cara que faz pensar como é bom ter um sonho e ser fiel a ele a vida inteira.

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Foto: Jeffrey Arguedas/EFE