14/08/2015 - 20:00
A VIAGEM DAS CARRANCAS/ Pinacoteca do Estado de São Paulo, SP/ até 18/10
Instituto Moreira Salles, RJ/ de 5/12 a março de 2016
As figuras esculpidas em proas de barcos – as populares carrancas, assim chamadas no Brasil e em Portugal desde o século 16 – são tradição milenar, com registros entre gregos, fenícios, cartagineses, romanos, vikings e ibéricos, desde a antiguidade. No Brasil, essa arte escultórica é um fenômeno geográfica e temporariamente delimitado entre 1870 e os anos 1940, nas águas navegáveis do Rio São Francisco, entre Pirapora, Minas Gerais, e Juazeiro, na Bahia. Este é o roteiro perseguido em “ A Viagem das Carrancas”, mostra organizada pelo Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro (IIPB), que realiza a proeza de reunir 41 carrancas de coleções públicas e particulares e 42 fotografias de Marcel Gautherot, pertencentes ao Instituto Moreira Salles.
VIAJANTES
Gautherot documenta carrancas do rio São Francisco,
em foto de Pierre Verger, companheiro de viagem
É notável que muitas das esculturas aqui apresentadas foram flagradas in loco pelas lentes de Gautherot, em 1946, durante viagem com Pierre Verger. Vê-las lado a lado – imagens e peças – é uma experiência que potencializa a imaginação, reascendendo a visão das peças em atividade, sob o sol a pino, rio abaixo, corredeira acima, à mercê das intempéries. Às fotos de Gautherot, publicadas em 1947 na revista O Cruzeiro, atribui-se a popularização da arte das carrancas. Depois dessa data, que coincide com a chegada dos barcos motorizados ao São Francisco, as esculturas passam a ser feitas para colecionadores e turistas.
É clara a distinção entre as carrancas navegadas e não navegadas. As primeiras têm a aura mágica da função de proteção em viagens, uma incrível variedade de estilos, que remontam a técnicas e traços arcaicos. Há muita história talhada nas crinas e bigodes desses “bichos estranhos”, chamadas assim por Carlos Drummond de Andrade.
As segundas, produzidas a partir dos anos 1950, e guardadas em ambientes protegidos, preservam a pintura e, acima de tudo, alcançam uma unidade de estilo.
BICHOS ESTRANHOS
Carranca navegada de autoria do Mestre Guarany
em exibição na mostra organizada pelo IIPB
Grande parte das peças expostas é de autoria de Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany (1882-1985). Descendente de jesuíta espanhol e índia guarani, ele personifica a identidade híbrida desta arte do Médio Chico, que absorvia influências dos navios transoceânicos que aportavam no litoral baiano e sergipano. Figuras de proa na forma de leões, por exemplo, eram usadas em navios ingleses, espanhóis, franceses e portugueses – origem da tradição no Brasil. Referências a dragões, cavalos e cachorros também são discernidas. “Guarany é um inventor. Deve-se a ele a criação do tipo fundamental da carranca são-franciscana: nem aterradora nem cordial, nem homem nem bicho, mas um pouco de tudo isso, graças a um equilíbrio sempre muito bem calculado de elementos discordes”, escreve o curador Lorenzo Mammi, no livro “A Viagem das Carrancas” (Editora Martins Fontes, 288 págs., R$ 148). Ao colocar Guarany como “ o primeiro artista moderno da arte popular brasileira”, Mammi acerta o tom do que tem se mostrado o objetivo das ações do IIPB: a reavaliação estética e crítica da arte popular. “O IIPB foi criado em 2006 por um grupo de pessoas que discutiam a questão da arte popular, preocupados com a divulgação e a preservação desse imaginário”, diz à Istoé a colecionadora Vilma Eid, presidente do instituto e diretora da Galeria Estação, em São Paulo.
Crédito: foto Andrew Kemp