Com sua criatividade de sambista, Jamelão definiu de forma brilhante o estado de espírito do então presidente Bill Clinton durante visita ao Morro da Mangueira, em 1998. O homem mais poderoso do Planeta estava “feliz como pinto no lixo”. Falta um Jamelão francês para criar uma imagem equivalente para o presidente Fernando Henrique Cardoso, na sua mais badalada viagem internacional. O sucesso se mede pelos aplausos da platéia. Isso, FHC teve de sobra na sua 81ª visita ao Exterior. O Príncipe dos Sociólogos foi tratado como rei na Espanha, na França e na Inglaterra. A visita a Londres não estava na agenda. Mas como recusar um convite para um fim de semana com Tony Blair e Clinton, na casa de campo dos primeiro-ministros britânicos, onde Winston Churchill costumava descansar nos duros anos da Segunda Guerra Mundial? Em 1998, Clinton mostrou o prestígio de FHC ao convidá-lo para passar um domingão em Camp David. Em ambos os casos, foi a primeira vez que um chefe de Estado latino-americano recebia tal mimo. Fernando Henrique também fez história ao discursar na Assembléia Nacional Francesa, onde nasceram os conceitos esquerda e direita. Lá, depois de ter seu discurso interrompido nove vezes por aplausos, acabou ovacionado durante um minuto e meio por uma platéia de ministros, parlamentares e intelectuais. “Vive la France”, bradou ao terminar. Também foi a estrela em Madri, onde durante 20 minutos fez o discurso de abertura da Conferência sobre Transição e Consolidação Democrática, da qual participaram 13 chefes de Estado e Mikhail Gorbatchov, o responsável pelo fim da União Soviética. FHC ainda teve tempo para receber os jogadores brasileiros que jogam na Espanha e na França.

Grand Monde – Entrar para a intimidade do Primeiro Mundo, além de inflar ainda mais o ego de FHC, foi uma demonstração de que a diplomacia presidencial está surtindo efeito. Os diplomatas brasileiros acreditam que o sucesso da visita vai facilitar os planos de fortalecer o Mercosul e de criar uma área de livre comércio com a União Européia. Num momento em que o mundo está de pernas para o ar, o Brasil se fez ouvir com um discurso eloquente, chamando os mais poderosos à razão. FHC pregou a “globalização solidária”, a criação de uma espécie de CPMF global (Taxa Tobin) para ajudar nações pobres e defendeu com veemência inédita a criação de um Estado palestino. Foi diplomático ao não apontar o dedo para os franceses, quando criticou o protecionismo dos países ricos na área agrícola. Por isso, deixou claro que se referia mais aos Estados Unidos do que à Europa, apesar de serem os subsídios europeus que mais prejudicam a exportação agrícola do Brasil.

“O fato de FHC ter essa boa visibilidade só contribui para o Brasil ter destaque no plano internacional. Dentre os presidentes do pós-guerra, somente Juscelino Kubitschek teve essa receptividade no Exterior. Por isso, a questão da personalidade do governante é importante”, opinou o cientista político Christian Lohbauer, do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional da USP. Hábil, FHC soube escolher as palavras e citações certas para cada público. Na Espanha, citou Hegel, Marx, Rousseau, Hobbes e o pensador espanhol Miguel Unamuno. Em Paris, durante 16 minutos, em francês fluente, costurou suas idéias com referências a dez grandes nomes franceses, como Claude Lévi-Strauss, Albert Camus e Montesquieu. Ao final, depois de entusiasticamente aplaudido, foi cumprimentado pelo primeiro-ministro socialista, Lionel Jospin. A direita francesa fez coro. O presidente Jacques Chirac disse que FHC é hoje uma das lideranças políticas do mundo. O sociólogo Alain Touraine, considerado de esquerda, aprovou seu ex-aluno. “Foi um bom discurso, e de esquerda.” Mas em seguida emendou que o próprio FHC é de centro e lamentou que ele não tenha dado atenção aos movimentos sociais no Brasil e nem conseguido combater uma das maiores chagas do País: a desigualdade social. O líder do Partido Comunista Francês, deputado Robert Hue, disse que as palavras do presidente foram corajosas: “O discurso foi uma unanimidade entre a esquerda.” Elogios que seriam impensáveis na boca da esquerda brasileira. “FHC gosta de fazer discursos à esquerda quando está fora do País. Até parece um petista falando”, ironizou Marco Aurélio Garcia, ex-secretário de Relações Internacionais do PT. Mas o secretário de Cultura de Marta

Suplicy reconhece as qualidades do presidente. “É inteligente, afável, fala algumas línguas. Com isso tem um bom desempenho performático. Isso é bom para o País. Ruim era quando tínhamos um Figueiredo na Presidência. O problema é que causa perplexidade quando nos perguntam como está a direita no Brasil e respondemos que a direita está no poder”, emendou Garcia. Outra voz crítica, o cientista político Francisco de Oliveira aplaude o discurso de FHC com relação aos EUA. “Apesar de FHC não fazer no Brasil nada do que prega lá fora, acho importante o que ele falou com relação aos Estados Unidos. A Assembléia Nacional Francesa não é de pouca importância. Ali, FHC não falou apenas para a França, mas para a União Européia, que é um parceiro comercial alternativo aos Estados Unidos”, comentou Oliveira. Se os adversários alfinetam, os aliados sorriem de orelha a orelha. “A boa imagem de FHC no Exterior pode angariar votos para o candidato dele em 2002”, acredita Claúdio Lembo, dirigente do PFL e professor de direito constitucional.

Futuro – A comparação com o russo Mikhail Gorbatchov, responsável pela abertura política na ex-URSS, é inevitável para o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília. Paparicado fora de seu país, dentro de casa sua popularidade caía vertiginosamente até deixar o Kremlin. Fleischer lembra que FHC já era conhecido antes de assumir o Planalto. “Para o Brasil é positivo ter um presidente que seja tão bem-visto lá fora, porque o País passa a ser mais ouvido. A imagem do Brasil no Exterior melhorou. O discurso de FHC de fato foi excelente, de esquerda, e agradou à platéia. Mas há a contradição com a prática aqui no Brasil. Governar o Brasil por oito anos, um país com problemas tão sérios, é um desgaste total”, observou Fleischer. No sábado 10, FHC terá outra grande oportunidade para demonstrar seus dotes de líder mundial. Ele vai abrir a Assembléia Geral da ONU, em Nova York. Ao contrário dos últimos anos, FHC faz questão de ir. Afinal, não é mais segredo nos bastidores de Brasília que o presidente sonha com outro cargo depois de deixar o Planalto: o de secretário-geral da ONU.

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Colaboraram: Ines Garçoni e Juliana Vilas

As cartadas do presidente no jogo global
MERCADO e ESTADO O Estado deve regular a vida, a saúde, a educação, a segurança, enquanto o mercado deve ser o gestor dos bens. “Se o mercado é o instrumento mais eficiente para a geração de riqueza, é preciso impor limites a suas distorções e abusos.”

GLOBALIZAÇÃO e PROTECIONISMO Defesa da globalização solidária, com menos disparidades entre as nações no comércio internacional. Críticas às atitudes hegemônica e protecionista dos Estados Unidos. “A barbárie não é somente a covardia do terrorismo, mas também a intolerância ou a imposição de políticas unilaterais em escala planetária.”

MERCOSUL “O Mercosul é tão importante para o Brasil quanto a União Européia o é para a França.” FHC defende associação entre o Mercosul e a União Européia e diz que o interesse do Mercosul é de maior acesso ao mercado agrícola comum.

TAXA TOBIN Propôs a tributação do capital especulativo para assegurar liquidez às economias emergentes e recursos para os países mais pobres. Idéia do Prêmio Nobel de Economia James Tobin, a taxa é uma espécie de CPMF global. “É hora de controlar a instabilidade dos fluxos financeiros.”

DEMOCRACIA GLOBAL Defesa da democratização dos mecanismos decisórios de poder, reforma e ampliação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, do qual hoje são membros Estados Unidos, China, Rússia, França e Reino Unido. O Brasil reivindica uma vaga de membro permanente no conselho. Apoio ao Protocolo de Kyoto e à criação do Tribunal Penal Internacional.

ESTADO PALESTINO Num momento em que, sob a liderança de Tony Blair, o mundo delineia um projeto de criação do estado da Palestina, FHC manifestou a mais contundente defesa desta proposta, com a ressalva de que é preciso respeitar a existência do Estado de Israel.

CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES Muito em voga após o atentado terrorista nos EUA, a tese levantada por Samuel Huntington foi repelida por FHC, que citou o exemplo do Brasil. “Nós nos opomos tenazmente ao discurso de que existe um choque de civilizações: de um lado, o Ocidente judaico-cristão; de outro, a civilização muçulmana.

DÍVIDA DOS PAÍSES POBRES Lembrando que o Brasil praticamente anulou as dívidas dos países pobres da África e América Latina, cobra dos países ricos a mesma postura.

TERRORISMO Sobre o pacote antiterror aprovado pelos Estados Unidos, FHC criticou: “Se, para vencer o terror, tivermos que abrir mão das liberdades individuais, das garantias dos direitos civis, da proibição do uso da tortura, então nossa vitória será realmente um contra-senso.”

MOVIMENTO ANTIGLOBALIZAÇÃO Disse que este – por ser um movimento contra, e não a favor de algo – é diferente dos protestos do fim dos anos 60. “No Brasil, os que são contrários à globalização são a favor da burocracia estática.”


 


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