O sítio arqueológico mais importante do Brasil, considerado patrimônio mundial pela Unesco, pode fechar por falta de dinheiro. Há 50 mil anos, homens pré-históricos chegaram à região onde hoje está o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, e lá deixaram suas marcas, como restos de fogueiras e pinturas rupestres. Agora, a entidade mantenedora do local que modificou parte importante da teoria da migração dos seres humanos para a América demite funcionários e pode abandonar esse tesouro até o fim do ano, abrindo caminho aos vândalos e à degradação natural. Tudo porque os repasses financeiros que recebia do governo e de empresas doadoras secaram. “É o fim. Assim teremos que fechar”, diz a arqueóloga Niéde Guidon, diretora da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), que administra o sítio.

Patrimonio_Abre.jpg
HISTÓRIA
O parque tem 172 sítios. Neles, há vestígios humanos que datam de 50 mil anos

Para acabar 2015, a organização precisa de no mínimo de R$ 500 mil. Em caixa, conta com R$ 307 mil. A falta de verbas já culminou em perdas irreparáveis para a memória do Brasil e do mundo. Sem vigilância, caçadores invadiram um dos sítios arqueológicos e praticaram tiro ao alvo em pinturas rupestres. Recentemente, 1/3 dos funcionários foi dispensado. Das 28 guaritas, só doze estão abertas. Das cinco equipes de ronda, resta uma. “Tivemos que demitir os outros e vender os carros”, afirma Niéde.

O abandono ameaça os 172 sítios que mudaram o entendimento sobre a chegada do homem à América. Antes da descoberta, cientistas acreditavam que o homo sapiens havia cruzado o estreito de Bering, que liga a Ásia ao atual Alaska, há cerca de 12 mil anos. Com o aparecimento de vestígios humanos na Serra da Capivara datando de 50 mil anos, o modelo foi revisto. “As pesquisas de Niéde foram uma revolução na arqueologia porque questionaram a origem do homem no continente”, diz Carlos Xavier, da Universidade Federal da Paraíba.

A responsabilidade pela conservação do parque é do governo federal, mas nos últimos anos caíram os investimentos. Através do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, o País dava à Fumdham dinheiro de compensação ambiental de obras que devastam a natureza. A entidade chegou a receber até R$ 2,7 milhões em 2012. No ano passado, entraram R$ 400 mil. “O parque fechar ou não é decisão do governo”, diz a cientista. O ICMBio afirma que os locais beneficiados pela compensação são os mais afetados pelos empreendimentos responsáveis pela destruição. E que nem sempre eles estão nas regiões das instituições que querem receber a verba.

A segunda fonte de recursos importante para o projeto é a Petrobras, que investiu R$ 15 milhões desde 2001. O problema é que as doações de 2014 e 2015 foram de R$ 480 mil e R$ 720 mil, contra R$ 1,3 milhão de 2013. A arqueóloga se preocupa porque um novo contrato não foi firmado. A Petrobras informou que as negociações para a renovação não foram iniciadas e que vai avaliar a continuidade do apoio.

01.jpg

Nada disso seria necessário se o parque pudesse se manter, o que não acontece porque um aeroporto em construção desde 1997 ainda não foi aberto em São Raimundo Nonato, perto dos sítios. Hoje, para chegar lá, são mais de quatro horas de estrada da pista de pouso mais próxima, em Petrolina (PE). Segundo a Fumdham, o número de turistas dispararia de 25 mil para 6 milhões anuais caso o aeroporto funcionasse. Se a meta fosse atingida, vendendo apenas as entradas mais baratas, o faturamento pularia para R$ 84 milhões, muito acima dos R$ 6 milhões por ano necessários para o funcionamento adequado. “Um patrimônio da Unesco pode se sustentar muito bem”, diz a cientista.

A realidade é que por ora a rede hoteleira Hyatt desistiu de abrir ali uma filial e a companhia aérea Emirates freia um plano de criar escala na região. A Secretaria de Transportes do Piauí não revelou os motivos da demora, mas garante que a obra será entregue em agosto. De acordo com Leonardo Cruz, secretário de aeroportos da Secretaria de Aviação Civil, a estrutura não receberá aeronaves grandes e há um projeto de ampliação, sem data de entrega definida.

Com este sombrio prospecto, a arqueóloga vê sendo destruído o projeto ao qual dedicou sua vida. “Para mim foi uma perda de tempo”, diz. As pesquisas feitas pela Fumdham, financiadas por outros meios, estão garantidas. Mas não a preservação dos sítios que as motivam. 

02.jpg