Charlotte Cohen-Tenoudji, hoje com 28 anos, sempre soube que havia sido adotada. Mas a jovem, que foi criada na França pelos pais, percebia lacunas em seu passado, com histórias desencontradas e episódios confusos. Um dia, viu no escritório do pai uma pasta com seu nome. Havia uma certidão de nascimento brasileira, exames de saúde, passaporte e um documento de uma conta bancária no nome de Guiomar Morselli. Até então, imaginava que havia chegado ao lar francês por meio de uma senhora brasileira, após a mãe biológica tê-la abandonado. Com o dossiê em mãos, começou a entender melhor a própria história. Charlotte tinha 14 anos, mas já era uma menina madura. A vida em Paris não era fácil. A mãe tinha episódios frequentes de raiva e era comum mandar a filha atrás do pai para ver se ele estava bebendo nos bares. Quando obteve essas informações sobre sua origem, a adolescente tentou ligar para o Brasil atrás da mulher cujo nome constava nos seus documentos, sem sucesso. Movida pela curiosidade, veio para o País aos 25 anos, após se formar em letras e cinema na Universidade Sorbonne, e passou a traçar uma incansável busca por sua mãe biológica. “Percebi que tudo na minha vida tinha sido uma falsificação, foi tudo construído sobre mentiras”, diz.

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A descoberta de Charlotte jogou luz sobre Guiomar e Franco Morselli, dirigentes do orfanato “Lar da Criança Menino Jesus” em 1987, ano em que a jovem foi levada para a França. Hoje o casal é réu em uma ação civil pública do Ministério Público Federal sob acusação de terem se aproveitado do cargo de dirigentes do orfanato para enviar crianças brasileiras para o exterior para adoção clandestina. No dia 13 de julho, a Justiça Federal cumpriu mandado de busca e apreensão na sede do extinto orfanato, na zona norte de São Paulo, e na residência dos Morselli. O inquérito foi instaurado em 2014. Até agora, sabe-se de pelo menos outros três casos de venda de crianças. Um deles levado para Paris como irmão gêmeo de Charlotte, mas para outra mãe adotiva. Os registros de nascimento das crianças abrigadas no orfanato eram forjados. As mães biológicas eram mulheres que trabalhavam no abrigo. Mas na certidão de nascimento nem sempre constava o nome da mãe verdadeira. “Na minha, aparece o nome de Maria, mas já sei que não é ela”, diz Charlotte, cuja suposta genitora confessou ter declarado ser sua mãe por pressão da ex-patroa. Os Morselli receberam R$ 100 mil pela adoção da menina. Segundo o Ministério Público, mais casos devem ser revelados, pois a prática era recorrente no local. Como explica o advogado Antonio Augusto Guimarães de Souza, um dos representantes brasileiros na Convenção de Haia que elaborou preceitos para adoção internacional, o processo é expressamente legal no Brasil, previsto tanto na Constituição quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente. “A adoção internacional é tratada com muita seriedade pelos países signatários da Convenção de Haia e hoje em dia as regras são bastante rígidas”, diz. “Toda criança tem direito a uma família e o Estado tem obrigação de garantir isso, seja no Brasil, na Itália, na Suécia, onde for, desde que essa criança tenha seus direitos respeitados.”

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A ação do MPF pede que os Morselli sejam condenados a pagar indenizações por danos materiais e morais às pessoas que foram levadas ao exterior ilegalmente para adoção. Mas a última coisa que Charlotte exige hoje é uma reparação material. Morando no Rio de Janeiro e dando aulas de francês, ela diz que seu único sonho é conhecer a mãe biológica. Por conta própria, já vasculhou tudo o que podia, de inquéritos antigos envolvendo o orfanato a documentos em cartórios, para descobrir qualquer informação que leve ao paradeiro de sua genitora. “Também conversei com várias pessoas ligadas ao abrigo, mas em um dado momento percebi que tudo o que me falavam era mentira”, diz a jovem, que conheceu outros órfãos adotados ilegalmente e ajudou até a encontrar a mãe de um deles. “Mas infelizmente, depois de todo esse tempo, não tive qualquer pista sobre quem é a minha mãe.” Até que qualquer novidade surja, ela diz segurar a ansiedade. Mas não esmorece. “É importante falar sobre o meu caso para que mais pessoas tomem conhecimento do que passei e para que isso nunca mais se repita, com ninguém.” 

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