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O jurista Ives Gandra Martins se agrega ao coro dos que vêem como inconstitucional a manobra do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) na aprovação da redução da maioridade penal para crimes hediondos na madrugada da quinta-feira (2/7), um dia depois da PEC ser rejeitada em plenário na quarta-feira 1. Professor Emérito de Direito Constitucional, Gandra é presidente do Conselho da Academia Internacional de Direito e Economia, membro da Academia de Letras Jurídicas, Brasileira e Paulista, da Academia Internacional de Cultura Portuguesa (Lisboa) e presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP. Autor de 40 livros, e com mais de 150 de títulos em parcerias (entre os quais uma edição da Saraiva que comenta a Constituição de 1988), o jurista se diz pessoalmente a favor da redução da maioridade penal para 16 anos, mas esclarece nesta entrevista à ISTOÉ por que acredita que a simples apresentação do Projeto de Emenda Constitucional fere a Constituição e as garantias individuais previstas na Carta Magna:

ISTOÉ – Como o senhor avalia a reviravolta ocorrida na Câmara dos deputados e a aprovação da maioridade penal para crimes hediondos, um dia após a votação que rejeitou a PEC 171?
Ives Gandra – Eu acredito que é inconstitucional. Uma vez rejeitada, pela Constituição, a mesma emenda não pode ser reapresentada. Há muitos constitucionalistas que entendem que, mesmo que haja uma maquiagem de um novo projeto, ele não poderia ser apresentado. O parágrafo 5º do artigo 60 da Constituição é claro: “Matéria constante de proposta emenda rejeitada, ou havida por prejudicada, não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.” Está escrito. Estou acostumado a ler o que está escrito e a não interpretar. E está escrito “a mesma matéria”. Não é a mesma proposta. Não é o mesmo projeto. Essa matéria que foi aprovada na madrugada de quinta-feira 2 foi rejeitada no dia anterior. No dia anterior o projeto era mais abrangente. Mas, por ser mais abrangente, a matéria já estava contida no projeto anterior. A não ser que dissesse o seguinte: A maioridade será reduzida para todos os crimes, menos o crime hediondo. Seria um contra-censo enorme.

É inconstitucional, mas a Câmara aprovou. O que acontece agora? Sete partidos e a OAB querem ir ao STF?
Ives Gandra – De fato agora alguém teria que provocar o STF(Supremo Tribunal Federal), considerando que ainda há mais três discussões. Mais uma na própria Câmara, e duas no Senado. Mas a impressão que eu tenho é que, a essa altura, já se poderia levar o caso para uma ação direta de inconstitucionalidade. Ou seja, foi proposta e aprovada um projeto de emenda em que a mesma matéria foi discutida na mesma sessão legislativa. Para se evitar perda de tempo, já se poderia entrar no STF pedindo uma liminar para suspender.

Como o senhor avalia a manobra do presidente da Câmara, Eduardo Cunha?
Ives Gandra – Eu tenho impressão que ele tem uma clara luta pelo poder entre o Legislativo e o Executivo. E entre aqueles que estão no exercício dos cargos maiores. Ele mostra que não está perdendo força. Que a presidente está decaindo e hoje tem 9 % de popularidade. Acho que (a manobra) foi uma demonstração de força. Que ele está perdendo, mas continua com todo o poder dentro da Câmara. O que não deixa de ser uma manobra impressionante. Para, em 24 horas, conseguir uma aprovação dessas, com uma margem razoável, ele demonstrou que tem muita força.

Como o senhor interpreta o argumento de que o Congresso está atendendo um clamor da sociedade?
Ives Gandra – Isso não modifica a Constituição. Se formos modificar a interpretação da Constituição de acordo com o clamor da sociedade não vai valer a segurança do Direito em nenhum lugar. E cada vez que a sociedade clamar e for às ruas, nós vamos romper com a Constituição para atender o clamor popular? O Direito pode manter a ordem para toda sociedade. Mas no momento em que um clamor ocorre, nós não vamos respeitar a constituição? Isso vira uma insegurança jurídica. Então nos momentos de tranqüilidade nós temos a Constituição e nos momentos de intranqüilidade nós não temos? É como dizer: eu mudo a Constituição como bem entendo. Era melhor deixar esse documento para nós discutirmos nas Academias.

O senhor acredita que é uma ilusão a sociedade acreditar que a criminalidade vai diminuir com a aprovação da redução da maioridade penal?
Ives Gandra – Eu acho que é uma ilusão. A maioridade poderia ser reduzida. Pessoalmente sou a favor. Se aos 16 anos um jovem pode decidir o destino do País votando, podemos entender que jovem tem conhecimento do que está fazendo. Mas nunca pense que essa redução da maioridade penal vai diminuir a criminalidade. Agora de fato há um clamor popular, indiscutivelmente. Os levantamentos demonstram que a maioria quer a redução.

O senhor acredita que a pergunta certa está sendo feita à sociedade?
Ives Gandra – É possível que não. O que ocorre: rara é a família que não teve um roubo, atentados, mortes, cometidas por menores de 18 anos. Então se perguntarem para a população, ela dirá que vê no menor criminoso alguém tão perigoso quanto os outros. Há um clamor popular em torno disso. O que não significa que seja um clamor correto. Normalmente os clamores populares podem levar à justiça pelas próprias mãos. No Direito, normalmente tem o processo penal para defesa do criminoso. Por que então eu tenho direito processual penal? É defesa do criminoso? Todo direito de defesa do criminoso é em função de um processo para defender o criminoso contra a sociedade. Não para defender a sociedade contra o criminoso. Se a sociedade fizesse Justiça pelas próprias mãos, não tinha Poder Judiciário, era linchamento na hora. Então tem que haver essa segurança jurídica. Nem sempre o clamor popular representa isso. As pessoas sabem o que não querem. Mas, muitas vezes, não sabem como fazer o que querem.

O que a sociedade naturalmente deseja é que não haja impunidade, certo?
Ives Gandra – Exatamente. Eles sabem o que não querem. Não querem impunidade. Não sabem como fazer o que querem. Porque, indiscutivelmente, isso não vai ser a solução. Principalmentecom essa escola de crime que nós temos. Agora se um menino de 16 anos tem plena noção do que está fazendo, eu não tenho a menor dúvida. Dizer que ele é relativamente incapaz e que não sabe o que está fazendo? Isso é romantismo. Uma visão lírica.

O senhor acredita que, uma vez ampliada a convivência de menores de 18 com criminosos adultos, a criminalidade possa até aumentar?
Ives Gandra
– A criminalidade pode aumentar, sim. Porque esses criminosos adultos, evidentemente, vão ensinar mais na prisão o que sabem aos menores. Muito mais do que se os menores estivessem numa casa específica para menores que praticaram crime.

ISTOÉ – Como o senhor entende a redução da maioridade penal em si?
Ives Gandra – Eu entendo que a PEC é inconstitucional. Porque o artigo 60, inciso 4. Do processo legislativo diz o seguinte: Paragrafo 4: não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir , numero 4 os direitos e garantias individuais. Aqui eu tenho na interpretação do artigo, a interpretação que eu dei quando fiz os comentários da Constituição com Celso Bastos pela edição saraiva, Não poderia sequer ser apresentado. Se for apresentado é considerado inconstitucional. Está escrito: não será objeto de deliberação do Congresso a proposta de emenda tendente no que tange os direitos e garantias individuais. Ora, o artigo 228, da impunibilidade a menores de 18 anos, diz o seguinte:

ISTOÉ – O senhor quer dizer que a impunibilidade até os 18 anos se inclui no artigo que rege os direitos e garantias individuais.
Ives Gandra – Exato. O jovem tem pela Constituição o direito de não ter a imputabilidade até os 18 anos. Se eu reduzo de 18 para 16 anos, o que está acontecendo? Estou tirando um direito e garantia individual de dois anos de não ter impunibilidade. É um direito que todos os jovens passaram a ter desde que a Constituição de 1988 foi aprovada. O artigo 228 é claro: são penalmente ininimputáveis os menores de 18 anos. É um direito individual de todo jovem, sujeitos a novas legislação em especial. Quer dizer, nessa legislação em especial, esse tratamento se dá ao menor, mas eles não podem ser considerados criminosos. Agora, quando da Constituinte, que eu participei e já tinha o contrato com a Saraiva para comentar a Constituição, eu mostrei para eles, e especialmente ao Bernardo Cabral, que foi o relator, que eu achava incoerente um rapaz de 16 anos poder decidir o destino de seu país votando e não ter consciência de que está praticando um crime aos 16 anos. Como pode decidir o destino do país votando e não saber que está praticando um crime? Eu e Bernardo Pertencemos a três academias juntos, filosofia, direito, economia, e do conselho , meu amigo desde o tempo de conselho de OAB.

ISTOÉ – Pode detalhar essa conversa do passado?
Ives Gandra
-Conversávamos porque nós tínhamos muito contato. E na verdade ele também não tinha muito o que fazer. Eram 8 comissões e 24 subcomissões, e cada subcomissão tinha liberdade absoluta. Ele tinha apenas que receber na comissão de sistematização todos os textos e dar, digamos, uma orientação, ou harmonização. E terminou inclusive nem prevalecendo. E quando isso foi para plenário, Roberto Cardoso Alves, criou o Centrão e eles fizeram um morro na qual o Bernardo também teve que, de alguma forma, aceitar. E aí a Constituição veio. A Constituição aproveitou parte do trabalho das 24 subcomissões, parte das 8 comissões, parte da comissão de sistematização, mas mudou, por exemplo, o regime que era para ser parlamentar para presidencial. A Constituição foi toda ela elaborada para um regime parlamentar de governo. E isso foi mudado só no plenário. Agora, acho uma incoerência poder votar aos 16, e só ser imputável aos 18 anos para a matéria penal. Agora, se entrou na Constituição, desde esse momento passou a ser Cláusula Pétrea.

ISTOÉ – E o que o deputado Bernardo Cabral argumentava com o senhor na época?
Ives Gandra
– Nas discussões que nós tivemos, não me lembro exatamente qual era a posição dele. Nós éramos diversas pessoas, juristas, discutindo não só isso, mas ordem econômica, poder judiciário. E este capítulo me interessava muito por causa da família. Nós discutimos muito, foi o parágrafo terceiro. Nós discutimos sobre a união estável sobre homens e mulheres. Alguns não queriam que ele pusesse assim e ele disse: ‘Eu vou por para não haver dúvida. Só pode haver união estável entre homem e mulher’. Mas o Supremo ultimamente tem mudado a Constituição como não deveria. Ele deveria apenas ser um legislador negativo.

ISTOÉ – Alguns ministros do Supremo, como Marco Aurélio Mello, consideram que a inimputabilidade até os 18 anos não é Cláusula Pétrea.
Ives Gandra
– Se nós temos um menor inimputável, não é um direito do menor de não ser imputável até os 18 anos? Se aquilo é um direito pela Constituição, significa que ele tem o direito de não poder se imputável. Ora, se ele tem o direito de não poder ser penalizado, como isso não é um direito individual e uma cláusula pétrea? Isso é um direito e uma garantia individual. Eu, como velho, sou pelo Direito Constitucional. Quando era jovem eu tinha mais certezas do que eu tenho hoje. Há tantas mudanças. Agora, nessa matéria eu estou absolutamente convencido. Eu posso ser vencido, mas não convencido. Se isso não é um direito individual, qualquer outro direito do artigo 5º da constituição também poderia ser minimizado. Isso, indiscutivelmente é um direito do menor de não ser imputável, por força de um dispositivo Constitucional. Quem disser que isso não é um direito do menor, eu não sei o que é um direito individual. Dizer que o fato de não poder ser inimputável não é um direito individual, então o que é um direito? Ele tem que explicar que é uma reflexão acadêmica. Nós gostamos de fazer poesia jurídica. É evidente que é um direito individual.

ISTOÉ– Mas em que se baseiam os ministros do STF que fizeram essa ponderação?
Ives Gandra
– Eles são todos meus amigos, eu os admiro muito. Falo com muita tranqüilidade e respeito. Luis Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello. Gosto muito do Marco. Agora inclusive tem um livro dos 25 anos de carreira dele em que eu escrevo, entre 10 juristas Ele é um orador notável, mas eu digo seguinte: a minha corrente de Direito Constitucional, o que eu ensinei enquanto fui professor titular até 1992, foi que o Poder Judiciário é um legislador negativo. E o Supremo Tribunal Federal é um legislador negativo porque é eleito por um homem só: o presidente da República. Legislador positivo só pode ser o Congresso, porque foi eleito por 140 milhões de brasileiros. Agora o que ocorre há uma nova teoria do neoconstitucionalismo, que entende isso como uma vertente. Nas comissões legislativas, cabe ao Poder Judiciário um protagonismo maior. Há um preenchimento em alguns casos por parte do Supremo de funções que seriam nitidamente do poder legislativo, que é o chamado neoconstitucionalismo.

ISTOÉ – Então está errado?
Ives Gandra
– Como estou com 80 anos, não sei quanto tempo mais de vida Deus vai me dar, eu vou defender as minhas teses, por mais arcaicas que possam parecer perante os membros do supremo, que são muito meus amigos. E nesse caso, acho o Marco um ministro fantástico. Mas eu aprendi em Direito Constitucional que Direito é o que está escrito. Eu não posso mudar o que está escrito. Não posso ser aquele intérprete que tira da lei o que não me agrada e ponho na lei o que não está porque me agrada. Eu, por exemplo, acho que 16 anos seria ótimo. Pessoalmente. Se ele pode votar porque não pode ser punido? Agora como constitucionalista eu não posso conceber que isso não seja um direito individual e cláusula pétrea. O artigo 228 é um direito individual do jovem. O artigo 60, inciso 4, tornou Cláusula Pétrea os direitos individuais.

ISTOÉ – Por que ser de 18 anos o corte da maioridade? Seria não porque o adolescente menor de 18 não saiba o que está fazendo, mas porque este adolescente está ainda em processo de desenvolvimento? Puni-lo da mesma forma seria como deixar de acreditar na sua capacidade de recuperação?
Ives Gandra
– Essa tese vale para todos os presos. A prisão tem dois objetivos. Punir de um lado. E recuperar para a sociedade de outro. Reconheço que o nosso sistema penitenciário é uma tragédia. É uma escola do crime. Esse é um elemento ponderável. Os jovens deveriam já estar em contato direto com os criminosos? Sei perfeitamente como os juízes enfrentam esses problemas. Outro dia eu conversava com o juiz Paulo Mello, que dizia: ‘Eu sinto nos menores muito mais agressividade. Há muito mais violência naquilo que eles dizem do que nos maiores de idade.’ Ou seja, dá a impressão nítida que no processo de se autoafirmar como criminosos dentro do grupo, os jovens se comportam com mais agressividade para impor respeito.

ISTOÉ – Qual é a sua visão sobre ampliar o tempo de internação dos menores infratores?
Ives Gandra
– É uma idéia boa para a minha tese de cidadão. Mas eu considero que tudo isso é inconstitucional em função da Cláusula Pétrea.

ISTOÉ – Qual é a saída?
Ives Gandra
– A saída seria uma recuperação maior no sistema carcerário. Se nos vamos manter até os 18 anos a maioridade penal, pensar efetivamente num sistema de recuperação dos jovens. Um sistema prisional para os jovens melhor do que nós temos hoje.