Parecia uma explosão hormonal no corpo de um adolescente de 16 anos. Turbulenta, conflitante, sem domínio, instável e cheia de reviravoltas, a Câmara dos Deputados viveu assim os dois dias de votação do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) da redução da maioridade penal. A ebulição ganhou seu ápice na madrugada de quarta-feira 2 com uma manobra regimental do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e a aprovação da redução da maioridade para crimes hediondos, uma noite após a emenda ter sido rejeitada em um plenário convulsionado. Ainda faltam discussões no Senado e o confronto está longe de acabar. Deputados de sete partidos e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) irão ao Supremo Tribunal Federal (STF) para requerer a anulação da aprovação, alegando inconstitucionalidade. A batalha na Casa refletiu o embate no País: de um lado a maioria da sociedade, que se posiciona a favor da redução da maioridade, como apontam as pesquisas; de outro, o governo federal, que luta contra a mudança na Constituição.

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Quarta-feira 01/07
A festa da bancada contrária à redução, após a PEC ter sido rejeitada em turbulenta madrugada

O primeiro pico de ebulição adentrou a madrugada da quarta-feira 1. Tomada por manifestantes e policiais, o cenário da votação do projeto transformou os acessos ao plenário numa montanha russa de fúria e choque. “Eduardo Cunha não devia radicalizar assim. Se a galeria fosse ocupada por 50% das pessoas a favor e 50% contra, isso não teria acontecido”, protestou o deputado Jean Wyllys (PSOL –RJ), atingido na confusão. O deputado Heráclito Fortes (PSB-PI) foi derrubado e, por isso, disse que mudaria o voto para sim à redução. Com uma diferença de cinco votos, a PEC, que antes previa a punição para jovens de 16 anos por crimes graves (incluindo, além dos crimes hediondos, tráfico de drogas, roubo qualificado, tortura e lesão corporal grave) foi rejeitada por 303 votos a favor e 184 contra. Para passar, eram necessários 308 votos favoráveis. Cunha, porém, articulou em 24 horas para que o plenário desse continuidade à votação, com uma segunda proposta de “texto mais brando”. E tudo mudou. Com as galerias fechadas ao público, foram 323 votos a favor, 155 contra e duas abstenções.

Na terça-feira 30, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, fez, na Câmara, um apelo pela manutenção da maioridade. Cardozo disse que a situação do sistema prisional brasileiro ficará “catastrófica” com jovens de 16 a 18 anos penalizados como adultos. “Temos presídios superlotados”, alertou o ministro. “As consequências serão desastrosas para o País. É uma bomba atômica para o sistema prisional.”

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Quinta-feira 02/07 – REVIRAVOLTA
Acusado de ato inconstitucional, Eduardo Cunha leva novo texto a
segunda votação e aprova redução da maioridade para crimes hediondos

Para analisar o embate do presente, o jurista Ives Gandra Martins recorre ao passado. Ele participou de trabalhos na Constituinte de 1988, quando se estabeleceu a imputabilidade aos menores de 18 anos. “Lembro de ter questionado meu amigo Bernardo Cabral, então relator da Constituição: ‘Como um jovem de 16 anos pode decidir o futuro do País votando e não saber que está praticando um crime? Achei uma incoerência’”, recorda-se Gandra, 80 anos, professor emérito de Direito Constitucional. “Não me lembro qual foi o argumento dele, mas, uma vez que entrou na Constituição como cláusula pétrea, propor qualquer mudança é inconstitucional.” Pessoalmente, Gandra é favorável à redução da maioridade penal para 16 anos. Mas, como jurista, afirma que jamais poderia apoiá-la. “Isso, indiscutivelmente, se tornou um direito e uma garantia individual do jovem pela Constituição de 1988. Não podemos violá-la”, diz. “Se isso não é um direito do menor, então eu não sei o que é um direito individual. Partindo por aí, qualquer outro direito do artigo 5o da Constituição pode ser minimizado.” A segunda inconstitucionalidade, lembra Gandra, é a aprovação da matéria 24 horas depois de ser rejeitada. Diz o parágrafo 5º do artigo 60 da Constituição: “Matéria constante de proposta de emenda rejeitada, ou havida por prejudicada, não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, apoiou a aprovação da segunda proposta. “A mudança é necessária e importante”, disse ­Alckmin, que defende o aumento do tempo de internação pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo pesquisas como a do Datafolha, nove em cada 10 brasileiros querem a mudança, com apoio de 87% dos entrevistados. Segundo o PiniOn, aplicativo e plataforma mobile crowdfunding para pesquisas, 78% apoiam a mudança. A maioria também acredita que, com a medida, a criminalidade diminuirá. Gandra ressalva: “podemos entender que o jovem aos 16 anos sabe o que está fazendo ao cometer um crime. Mas nunca pense que a criminalidade vai cair com a redução da maioridade. É possível que até aumente. Presídio é escola do crime”. Sob a ótica do anseio social, o psicanalista Jorge Forbes reforça: “Sempre que a sociedade está se sentindo desprotegida, ela age de forma reacionária. É normal que busque medidas de força”, diz.

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Se a enorme maioria que defende a redução da maioridade penal conseguir romper as barreiras do STF, estará o governo diante de mais um enorme desafio. Afinal, mesmo os que defendem a redução não admitem um sistema prisional tão medieval. Como o governo vai se preparar para receber de 20 mil a 40 mil de jovens nos presídios, tal como são hoje? Notória pós-graduação do crime, o sistema carcerário deixa as chances de recuperação entregues à sorte, com adolescentes e criminosos adultos convivendo atrás das mesmas grades e sob as mesmas regras de punição. Considera-se que, antes dos 18 anos, o adolescente ainda está em processo de desenvolvimento físico e mental. É um período turbulento e de vulnerabilidades emocionais. Por isso a inimputabilidade penal é garantia constitucional. Por essa razão, deputados e senadores querem espaço de tratamentos diferenciados de acordo com a faixa etária dos infratores.

O debate está longe do fim, mas nesta discussão gregos e troianos acham que a educação é o melhor caminho. O problema é que seus resultados surgem apenas a médio e longo prazo.

Fotos: Francisco Stuckert/Agência o Dia/Estadão Conteúdo; André Dusek/Estadão Conteúdo