No momento em que o Brasil assiste à Operação Lava Jato colocar atrás das grades figurões considerados intocáveis, sob a acusação de corrupção, chega ao Brasil o romance de Umberto Eco ambientado na cruzada que inspirou o juiz Sergio Moro, a Mani Pulite, ou Operação Mãos Limpas, o maior desmanche de um esquema de crime organizado já visto na Europa. Primeira narrativa do autor com pano de fundo contemporâneo, “Número Zero” parte da proposta recebida por Coronna, um ghost writer sem emprego, para escrever um livro sobre a experiência de um jornal destinado a produzir apenas edições piloto, sem nunca chegar às mãos de qualquer leitor além de seu dono.

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CONTEMPORÂNEO
O semiólogo Umberto Eco assina, pela primeira vez,
uma ficção ambientada na atualidade

É o início dos anos 1990 e Coronna, assim, muda-se para Milão e passa a integrar a equipe da redação do periódico “Amanhã” como um diretor de redação que, perante os colegas, tem a função de uniformizar os textos de repórteres e editores. Seu contratante, um jornalista sem qualidades chamado Simei, informa que o dono, um certo comendador Vimecarte deseja com o projeto fazer com que seus inimigos fiquem sabendo da produção de reportagens e artigos que possam difamá-los ou destruir seus negócios escusos.

Vimecarte, que não aparece na trama, é um empresário com pretensões políticas, que dirige a instituição Pio Alberto Trivulzio em Milão. Na verdade, ele é a encarnação do engenheiro Mario Chiesa, pré-candidato à prefeitura milanesa em 1992 que dirigia a Pio Alberto Trivulzio. Acusado de cobrar propina milionária em troca do favorecimento na escolha de uma firma de limpeza para a instituição, ele foi preso e, da cadeia, delatou outros envolvidos no esquema de corrupção que a Itália estava mergulhada, deflagrando, assim, a Operação Mãos Limpas, que, em dois anos, emitiu 2.993 mandados de prisão e colocou 6.059 pessoas sob investigação (872 empresários, 1.978 administradores e 438 parlamentares, quatros deles, ex-primeiros-ministros), além de levar ao suicídio dez acusados pelo juiz Di Pietro, o Moro italiano.

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O livro se passa nos momentos que antecederam o início das prisões, mostrando a preparação das edições do “Amanhã”. E aí Umberto Eco desfia sua ironia sobre trabalho da imprensa, embora no lançamento italiano do livro, tenha feito questão de ressalvar: “Só parte da imprensa, aquela que faz o papel de ‘máquina de lama’.” A “máquina” do livro funciona assim: os repórteres saem às ruas para buscar alguma história que deponha contra alguém. As orientações são sempre insinuar e se preparar para o desmentido. Os desmentidos devem ser publicados com respostas que, também por meio de insinuações, tirem o crédito e a moral de quem quer que seja que tente desmentir o periódico. “Um jornal não é feito por notícias, um jornal faz notícias”, ensina Simei à sua equipe, que, com exceção de Coronna, não imagina estar trabalhando em um noticiário que nuca será publicado.

No lançamento italiano, o semiólogo foi perguntado se Vimecarte era uma representação de Silvio Berlusconi, ex-primeiro ministro da Itália e magnata das comunicações que na quarta-feira 24 teve a prisão pedida por um Tribunal de Nápoles por tentativa de suborno. Eco respondeu: “A Itália está cheia de Vimecartes.”

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Fotos: LUIS ORCAJO TAPIA, AG. OMEGA