O choro da jornalista e colunista carioca Hildegard Angel, 65 anos, era um gemido baixinho, mas tão intenso que parecia ecoar por toda a cobertura triplex em que ela mora, de frente para a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Por duas horas, ela falou à ISTOÉ sobre a peça e o livro que lançará no ano que vem para marcar os 40 anos da morte – ou melhor, do assassinato como faz questão de frisar – de sua mãe, a estilista Zuzu Angel (1921-1976). A ditadura brasileira mudou a história de Hildegard. Em 1971, seu irmão, o militante Stuart (1946-1971) foi preso, torturado e morto por militares da Aeronáutica. Seis anos depois, foi a vez de sua mãe morrer em um acidente de carro que, segundo comissões que apuram os crimes cometidos naquele período, pode ter sido provocado por agentes da ditadura. Tudo estará na peça, cujo título provisório é “Zuzu – Meu modo de morrer”, nome de um livro que sua mãe queria escrever, mas não teve tempo. O espetáculo costura monólogos que a colunista começou a fazer nos anos de chumbo, mas que só agora conseguiu “enfrentar” e dar forma dramatúrgica.

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A protagonista, ainda não definida, será uma mistura de Medeia, a mãe limítrofe da tragédia grega de Eurípedes (431 a.C), e da estilista francesa Coco Chanel (1883-1971). Por mais estranho que pareça, Zuzu conjugou esses extremos. Rica, ela usou o luxo como arma no combate à ditadura depois que seu filho desapareceu. O ponto alto dessa combinação de moda e guerrilha foi um desfile-protesto realizado em Nova York, em 1971, no qual os vestidos eram decorados com tanques de guerra, quepes militares, anjos e canhões. Foi por atitudes corajosas e ousadas como essa que Zuzu passou a ser investigada, seguida e ameaçada. Não será surpresa se a peça for dirigida pelo diretor Aderbal Freire-Filho, que era amigo de Zuzu e também atravessou os anos de chumbo.

Hildegard relembra a tortura diária vivida pela família. “Éramos seguidos, recebíamos telefonemas estranhos, andávamos pelo meio da rua.” A jornalista afirma que tentava não passar os dias mergulhada no medo para não desmoronar. “Nos eventos sociais, quando pessoas criticavam os terroristas, eu saía para outra direção, não contestava. Eu sabia que essa era a minha sobrevivência porque havia uma sentença de morte. Eu era a irmã do Stuart”, diz. A carreira de atriz, depois de atuar em várias peças e alguns filmes, foi abandonada também por temor. “Quando mamãe morreu daquela maneira assustadora, achei que era a hora de parar. Eu teria que estar sempre vigilante e, no teatro, ficaria muito desprotegida. Eu temia pela minha vida”, diz.

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Nas paredes e nos móveis de uma sala do belo apartamento, há várias fotos e quadros do irmão e da mãe. Uma tela, pintada por Glauco Rodrigues e dada pela atriz Tonia Carrero, retrata Stuart como São Sebastião, sangrando devido a flechadas no corpo. Não há possibilidade de ela passar um dia sem lembrar deles, confessa. Nem Hilde quer isso. Ao contrário, seu objetivo é não deixar que a trágica história familiar seja esquecida. “Eu sobrevivi para contar”, afirma. No ano que vem, a jornalista inaugura a Casa Zuzu Angel, no bairro carioca da Tijuca, um centro de memória da moda do Brasil, como descreve. Ao longo das décadas, ela já perdeu a conta do número de exposições realizadas, monumentos inaugurados, palestras dadas, homenagens prestadas e recebidas à mãe e ao irmão.

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“Sabia que o Stuart foi o primeiro desaparecido político a ter um logradouro público com o seu nome? Pedi que fosse na mesma Ilha do Governador onde ele foi assassinado. Hoje, é nome de uma praça linda lá.” Ainda assim, Hilde se diz impressionada com “o zero de informação que muitos brasileiros têm sobre este passado”, especialmente a geração de até 40 anos. “Agora, tem gente na rua pedindo a volta da ditadura. Não sabem como foi!” Para ela, os eventos culturais é que recontam e mostram o terror que foi aquela época sem direitos, sem liberdade, de tortura e morte. Se tudo der certo, “Zuzu – Meu modo de morrer” entrará em cartaz no dia 26 de abril do ano que vem, quando serão arredondadas as quatro décadas da morte da estilista. “A mamãe fazia os protestos através dos vestidos; eu consegui fazer política através das purpurinas do colunismo social”, diz Hilde, que trabalhou décadas no jornal “O Globo” e no “Jornal do Brasil”, cuja versão impressa foi extinta, e hoje mantém um blog que leva o seu nome.

Fotos: Eduardo Zappia/Ag. Istoé 


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