Somalium, um dos calmantes mais vendidos no Brasil, tem sido muito consumido por seus próprios fabricantes: os proprietários do Aché Laboratórios Farmacêuticos S.A. É que a batalha pelo controle do maior laboratório da América Latina, com um faturamento anual superior a R$ 650 milhões, extrapolou as trincheiras das assembléias de acionistas e transformou-se em um embate jurídico com direito até a falsificação de documentos. “Estamos vivenciando um drama típico de novelas. É muita baixaria”, reclama Carlos Eduardo Depieri, um dos acionistas e membro do Conselho do Aché. Representando as três famílias que há mais de três décadas compraram um pequeno laboratório de um químico francês, o Grupo Aché é composto, hoje, por três empresas: Ventura Holding Ltda., Marvic’s Empreendimentos e Participações Ltda. e Partage Empreendimentos e Participações Ltda. As três foram montadas em 1997, como parte de um plano de sucessão dos fundadores do Grupo Aché. Cada uma das três famílias indicou dois membros para o Conselho de Administração e a direção do Aché passou a ser exercida por profissionais contratados. “É claro que sempre houve alguma divergência, mas os problemas eram conversados e resolvidos de forma amistosa”, lembra Carlos Eduardo, que, juntamente com o irmão José Luiz Depieri, representa a Ventura. Em julho, as divergências cordiais viraram caso de polícia.

Sem avisar aos demais acionistas, em 16, 17 e 18 de julho, os representantes da Partage, Adalberto Baptista e Joamir Alves, publicaram a convocação de uma assembléia para 26 de julho, às 10h, na sede do grupo, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Os representantes da Ventura e da Marvic’s, no entanto, leram o edital e compareceram à assembléia. Antes de a reunião começar, Adalberto e Joamir se retiraram e levaram com eles o livro de registro de atas. A assembléia se realizou mesmo com a ausência deles e sua ata foi impressa em folhas avulsas, posteriormente encaminhadas à Junta Comercial de São Paulo para que fosse feito o registro e arquivamento, pois Adalberto se recusou a devolver os livros em que o relato da reunião deveria estar assentado. Quatro dias depois, a Junta Comercial informou que o pedido não poderia ser aceito. Diz o despacho da Junta Comercial: “Tendo em vista duplicidade de atas referentes a assembléia realizada no mesmo dia e hora, com aprovação de matérias diferentes, apenas uma delas deve prevalecer para efeito de arquivamento.” A segunda ata a que se refere o documento da Junta Comercial foi encaminhada pela Partage para registro em 2 de agosto. Dentre outras deliberações, a ata relata o afastamento do conselho de administração do Grupo Aché dos representantes da Ventura e da Marvic’s. Tudo indica que o documento apresentado pela Partage é falso. “Como é que em 31 de julho a Junta Comercial informou sobre a existência de uma segunda ata que ela mesma só recebeu em 2 de agosto?”, questiona o advogado Cid Vieira de Souza Filho, que, em nome dos representantes da Marvic’s e da Ventura, pediu que o caso fosse investigado pelo Ministério Público de São Paulo. Desde agosto, o problema vem sendo apurado pelo promotor Roberto Alves.

No próprio texto da ata registrada pela Partage há indícios da falsidade. Em seu cabeçalho, logo depois de informar que a assembléia ocorrera em 26 de julho de 2001, há a seguinte inscrição: 07-25. Trata-se de um registro feito automaticamente pelo programa Word, utilizado para redigir o documento. Essa inscrição significa que o texto teria sido escrito em 25 de julho e não no dia 26, data da assembléia. “Com toda certeza, quando o documento foi digitado, o calendário interno do computador acusava o dia 25 de julho”, afirma laudo do perito Ricardo Molina. Além das provas documentais, há um outro elemento que torna a ata suspeita. A sede do Grupo Aché conta com um sofisticado sistema de segurança. Até os donos da empresa só podem entrar e sair do prédio com o uso de um crachá eletrônico. Em 26 de julho, os registros internos mostram que Adalberto saiu da empresa às 10h11. Isso significa que em apenas 11 minutos ele participou da reunião que afastou dois dos três acionistas do controle da empresa, protocolou a retirada dos livros, redigiu a ata, colheu as assinaturas, pegou o elevador e percorreu os mais de 50 metros que separam o hall da portaria.

Em 4 de agosto, os representantes da Ventura conseguiram uma liminar na Justiça suspendendo as decisões relatadas na ata suspeita. Em 13 de agosto, realizaram uma nova assembléia referendando as resoluções tomadas pela ata que não obtivera o registro. Em 11 de outubro, a liminar foi cassada, mas a Ventura e a Marvic’s conseguiram recorrer e hoje ela está em vigor. Por trás dessa guerra de acionistas está um negócio milionário. O Grupo Aché é dono de 42% das ações dos Laboratórios Schering Plough, que têm interesse em ficar com essas ações e apresentaram uma proposta milionária. Os valores não são revelados, mas os acionistas do Aché contrataram a Price Waterhouse para avaliar o grupo. “Tudo o que podemos adiantar é que a proposta apresentada pelos americanos é 25% superior à avaliação feita pela Price”, diz Carlos Depieri. Segundo ele, a briga toda se dá em razão da provável venda. Os representantes da Partage negam. “Eles querem vender a empresa para evitar que se apurem irregularidades por eles praticadas”, diz Adalberto. O representante da Partage afirma que a ata registrada na Junta Comercial é a verdadeira e que seu crachá foi usado por outra pessoa para deixar a empresa às 10h11.