Está nas mãos do juiz Marcello Ferreira Granado, da 7ª Vara Criminal da Justiça Federal do Rio de Janeiro, uma denúncia explosiva contra o Banco Central (BC). O documento chegou às mãos do magistrado em fins de novembro. Pesa sobre a instituição financeira, desta vez, a suspeita de que diretores e funcionários de carreira graduados do BC tenham se unido com o objetivo de tirar proveito de alguns processos de liquidação extrajudicial. O inquérito instaurado pela Polícia Federal do Rio investiga o envolvimento do ex-diretor de Fiscalização Cláudio Mauch, da atual diretora da área, Tereza Grossi, e de quatro funcionários nomeados para cuidar das liquidações dos bancos Vetor e Open, da Astra Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários e da Bell Empreendimentos e Participações Ltda. O delegado federal Deuler da Rocha investiga as práticas de formação de quadrilha, peculato, corrupção passiva e outras irregularidades. “A denúncia trata de atos praticados pela alta cúpula do BC, que teria manipulado as liquidações com o objetivo de conseguir vantagens”, afirma Rocha.

Nomeado pelo BC, o liquidante tem como missão sanear a instituição financeira que foi à bancarrota. O problema é que, em alguns casos, as liquidações têm criado mais prejuízos do que soluções. Isso teria acontecido nos casos denunciados, encaminhados ao procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro. Em uma carta com quatro páginas, o denunciante – não identificado pela PF – fez várias acusações que envolvem dirigentes do BC em irregularidades. A mais grave é a de que Mauch teria criado “uma empresa encarregada de cobrar créditos de difícil liquidação, titulados por instituições financeiras em regime de liquidação extrajudicial”. Mauch nega a acusação e diz que sua empresa, a Quantum Consultoria, oferece serviços para a área financeira, não incluindo entre seus clientes instituições liquidadas. “Não tenho nada a esconder. Tudo o que fiz nos meus 20 anos de carreira como funcionário público está registrado no BC”, afirma. Mesmo assim, a denúncia atiçou o deputado petista Aloízio Mercadante (SP). “Seria no mínimo antiético que um funcionário com informações estratégicas venha a usá-las para obter lucros. Vamos apurar o caso”, anunciou Mercadante.

Esquema – O denunciante afirma no documento que Mauch e Tereza Grossi seriam os cabeças de um esquema bem montado para tocar liquidações de instituições financeiras. Tereza não quis comentar as acusações. No caso do Banco Vetor e da distribuidora Astra, o liquidante Sérgio Prates e o advogado das instituições, Fernando Orotavo, teriam se unido para “apressar o encerramento das liquidações”, a pretexto de liberar patrimônio para pagar as dívidas da instituição. O Vetor e a Astra estiveram envolvidos no escândalo dos precatórios, que motivou uma CPI no Senado há três anos. Procurado por ISTOÉ, Prates se recusou a falar do assunto. Orotavo, por sua vez, rebateu a acusação: “Se eu tivesse algum conluio no BC, não teria movido 16 ações contra a instituição.”

Outra pista seguida pela PF levou ao funcionário aposentado do BC Sidney Ramos Ferreira. Quando era chefe de uma das representações do banco no Rio, ele aprovou uma remessa de cerca de US$ 13 milhões do Vetor para um banco nas Bahamas, um paraíso fiscal. O envio de dinheiro foi sugerido pelo então liquidante do Vetor na época, Celso Possas. “Essa remessa foi aprovada pela diretoria do BC, como confirmou o próprio Mauch. Está tudo dentro das normas”, defende-se Ferreira. O processo de liquidação do Vetor iniciou-se em fevereiro de 1997 e foi concluído em julho de 1998.

O delegado Deuler ainda aguarda o recebimento de documentos solicitados ao BC, mas a denúncia expôs um dos grandes nós do sistema financeiro, que são as liquidações extrajudiciais. Depois de perderem sua autonomia e passarem para o controle do BC, as instituições ficam sob comando de funcionários do banco, que as assumem com poderes quase imperiais. “O sistema é arcaico, não tem transparência e é de difícil fiscalização”, afirma o procurador da República Arthur Gueiros, que encaminhou a denúncia à PF. “Os liquidantes agem de forma arbitrária, como se fossem senhores feudais. Falta um controle externo ao próprio BC e isso dá margem a irregularidades.”

Reconhecendo que o processo tem falhas, Armínio Fraga, ao assumir a presidência do BC, criou um setor para cuidar da reformulação do sistema: a Diretoria de Finanças Públicas e Regimes Especiais, dirigida por Carlos Eduardo de Freitas. Do Plano Real para cá, o BC já decretou a liquidação extrajudicial de 205 instituições financeiras, das quais 52 bancos e 93 corretoras e distribuidoras de valores. A dificuldade de fiscalizar o trabalho desses funcionários é tanta que Armínio já pensa em alternativas radicais para substituir o modelo atual.

Enquanto a mudança não vem, liquidantes contratam assessores por honorários astronômicos, muitas vezes onipresentes em várias liquidações. “Há casos em que os contratados são os próprios parentes dos funcionários do BC”, acusa um influente executivo com experiência no mercado financeiro. “Na liquidação do Interunion, por exemplo, o liquidante gastou em três anos e meio cerca de R$ 10 milhões sem pagar nenhum credor”, reclama o advogado Fernando Orotavo. Pelas normas da autarquia, o liquidante é obrigado a apresentar relatórios mensais, incluindo todas as despesas feitas. Se for constatada alguma irregularidade, o BC lava as mãos e transfere para seu funcionário a responsabilidade de responder civil e criminalmente por seus atos. Muitas instituições financeiras se sentem lesadas pelo liquidante e acabam processando o BC para exigir indenizações volumosas, que acabam sendo pagas com o dinheiro da União.

Ética – Segundo técnicos do Banco Central, procura-se atribuir ao liquidante a tarefa de cuidar de uma ou mais instituições de um mesmo grupo financeiro. Pelo menos no caso de Sidney Ferreira, no entanto, a regra não valeu. Ele cuida de sete liquidações de no mínimo três grupos diferentes. A lei de liquidações em vigor tem nada menos do que 26 anos. Já que defende a modernização da economia brasileira a qualquer custo, Armínio Fraga poderia começar atualizando os seus próprios procedimentos. Se não for em nome da globalização, que seja pelo menos em nome da ética. 

Coleção de escândalos

Cláudio Mauch e Tereza Grossi dividem, junto com o ex-presidente do BC Francisco Lopes, a responsabilidade pela concessão do socorro financeiro aos bancos Marka e FonteCindam durante o processo de desvalorização do câmbio, em janeiro de 1999. Mauch, na época titular da diretoria de Fiscalização do BC, intermediou as operações em que o BC absorveu os contratos de venda de dólar no mercado futuro, antes na carteira das duas instituições, livrando-as de um prejuízo calculado em R$ 1,6 bilhão. Tereza ocupava interinamente a chefia do departamento de Fiscalização. Os dois, como integrantes da diretoria do BC, respondem a mais de uma dezena de processos, a grande maioria por improbidade administrativa, movidos pelo Ministério Público Federal. Mauch retirou-se da diretoria em março de 1999, depois de tocar por três anos um dos setores mais importantes do banco, responsável pela avaliação da solvência das instituições financeiras. Ele foi responsável também pela área de Normas por mais de dois anos. Aposentado, montou um escritório de consultoria em Porto Alegre, sua cidade natal. Tem na agenda alguns clientes graúdos, como o CCF (Credit Commercial de France). Assim como a colega Tereza, é funcionário de carreira do BC e conduziu liquidações polêmicas como as dos bancos Nacional, Econômico e Bamerindus. No caso do Econômico, Mauch é apontado pelo Ministério Público como um dos responsáveis pela ação tardia do BC. O Econômico já estaria quebrado pelo menos três anos antes da liquidação. No Nacional, o ex-diretor foi obrigado a administrar as justificativas do BC para a fraude de R$ 5 bilhões na contabilidade do banco dos Magalhães Pinto. No socorro ao Marka e ao FonteCindam, as decisões de Chico Lopes associadas à dobradinha Mauch-Tereza produziram uma coleção de barbeiragens, hoje objeto de ações judiciais. Ao salvar as duas instituições, o BC contrariou a orientação de seus advogados e fiscais, que opinaram pela liquidação.

Sônia Filgueiras