A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 20% das crianças e adolescentes do mundo sofrem de transtornos comportamentais ou mentais. Por isso, há algum tempo a ciência investiga de que modo estes males estão sendo tratados. As conclusões revelam aos especialistas um panorama extremamente preocupante. Em todo o planeta, observa-se um número assustador de meninos e meninas sendo medicados com remédios tarja preta, que afetam o sistema nervoso central e têm a venda regulada. Eles vivem uma infância tratada a pílulas.

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Embora se trate de um fenômeno entendido pelos especialistas como algo real e inquestionável, a super medicalização das crianças ainda é difícil de ser mensurada com bastante precisão. Há dados às vezes mais contundentes e outros apenas indicativos. No Brasil, uma ideia da dimensão do problema pode ser vista pelo aumento na venda de ritalina, medicação usada para o tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e de Hiperatividade (TDHA). Segundo dados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, em outubro de 2009 foram vendidas 58,7 mil caixas do medicamento. Três anos depois, no mesmo mês, as vendas somaram 108,6 mil caixas. É verdade que a droga é usada também por adultos portadores do transtorno, mas sabe-se que a maior parte dos usuários é de crianças e adolescentes.

Outro recorte – resultado de uma pesquisa feita pela Universidade Potiguar, no Rio Grande do Norte – ajuda a entender a gravidade do problema por aqui. Estagiários da instituição que atendem turmas de alunos de ensino básico observaram que vários estudantes tomavam psicofármacos. Especialistas do Serviço de Psicologia resolveram investigar o que estava acontecendo. “Recebemos crianças e adolescentes com prescrições de Ritalina (psicoestimulante), Rivotril (usado como ansiolítico) e remédios para dormir”, afirma Vania Calado, doutoranda em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e coordenadora do Serviço. Nada menos do que 36% dos alunos atendidos têm menos de 11 anos.

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A questão em torno do abuso na prescrição de remédios psiquiátricos a crianças tornou-se uma das principais preocupações de psiquiatras, pediatras e psicólogos. Tanto que obrigou entidades da importância da Associação Americana de Pediatria, por exemplo, a se posicionar publicamente alertando para o problema. A discussão principal é como evitar o hiper e o sub diagnóstico. No primeiro caso, um jovem que passa, por exemplo, por uma tristeza normal, dessas que todo ser humano experimenta, pode ser equivocadamente diagnosticado como depressivo e passar a tomar remédio sem a menor necessidade. Na segunda, um garoto realmente portador do transtorno de déficit de atenção, que lhe rouba a capacidade de seguir o ritmo dos colegas na escola, pode acabar avaliado apenas como desatento ou desinteressado. E passar anos e anos sem receber a ajuda que precisa.

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A habilidade de diferenciar a normalidade da patologia é o maior desafio para os especialistas. “Todos passamos por situações de tristeza e de desatenção em algum grau, mas só algumas pessoas são portadoras de depressão ou de TDAH, por exemplo”, afirma o psiquiatra Paulo Mattos, coordenador do Grupo de Estudos do Déficit de Atenção do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No caso das crianças, a dificuldade em reconhecer o que está havendo muitas vezes pode ser maior do que a experimentada em relação aos adultos. “O diagnóstico de um transtorno infantil pode criar uma zona de conforto para a aceitação dos problemas”, afirma o psiquiatra Moises Groisman, autor do livro Terapia Familiar Breve na Infância e na Adolescência. “Várias vezes demonstro que o comportamento considerado anormal não é um transtorno. É mimo”, diz.

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Porém, muitas vezes a avaliação é feita por profissionais não qualificados. O resultado é desastroso. “Há jovens que deveriam tomar os remédios e não o fazem e outros sendo medicados sem necessidade”, diz o psiquiatra Mattos. No documento “Manifesto por uma melhor saúde mental”, institutos de psiquiatria e psicologia da Inglaterra revelam o que pode acontecer, por exemplo, quando a criança precisa de ajuda e não a recebe. Eles estimam que até 2020 cem mil crianças e adolescentes ingleses sejam hospitalizados anualmente por auto-mutilação por não receberem tratamento para o transtorno. Na Nova Zelândia, um levantamento feito pelo Ministério da Saúde mostrou que vinte mil adolescentes daquele país consumiram antidepressivos em 2013.

A carioca Solange Brito, 52 anos, passou por quatro especialistas até que seu filho, Rafael, 12 anos, recebesse o diagnóstico de transtorno de humor e TDAH. Hoje medicado, leva uma vida normal. “Agora, se concentra. Antes, isso era impossível”, atesta a mãe. Já Denise de Oliveira, 48 anos, resistiu em dar medicação a seu filho Diego, 13 anos, portador de um transtorno do desenvolvimento. Mas cedeu. “Medicação não é fórmula mágica, mas ajuda”, diz. Experiência diferente viveu a contadora baiana Rosana Paulo, 50 anos, cujo filho mais velho, Rafael, chorava muito e chamava atenção da professora pelos problemas motores que atrapalhavam a escrita. Após ouvir alguns médicos, parou de trabalhar por dois meses, tirou o menino da escola e passou a dedicar-se prioritariamente a ele. Descobriu que ele era canhoto. Por isso só produzia garranchos ao tentar escrever com a mão direita. Hoje, aos 18 anos, Rafael se prepara para o vestibular.

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Foto: RENATO VELASCO 


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