Enfrentando Líderes de Torcida

A última coisa que queria fazer nas férias de verão era destruir
outra escola. Mas lá estava eu naquela manhã de segunda-feira,
primeira semana de junho, sentado no carro da minha mãe diante
da Goode High School, na rua 81 Leste.
A Goode fi cava em um prédio grande de arenito com vista
para o Rio East. Um monte de bmws e Lincoln Towns estava
estacionado diante dela. Olhando os elegantes arcos de pedra,
eu me perguntei quanto tempo levaria até ser expulso daquele
lugar.
— Relaxe. — A voz de minha mãe não parecia nada relaxada.
— É só uma visita de orientação. E lembre, querido: esta é a escola
de Paul. Portanto, tente não… Você sabe.
— Destruí-la?
— É.
Paul Blofi s, namorado da minha mãe, estava de pé no portão
da escola, recebendo os futuros alunos do primeiro ano do
ensino médio à medida que subiam os degraus. Com seus cabelos
grisalhos, roupa de brim e casaco de couro, parecia um ator
de tevê, mas ele era só um professor de inglês. Paul conseguira
convencer a Goode High School a me aceitar no primeiro ano,
[10]
apesar de eu ter sido expulso de todas as escolas que frequentei.
Tentei avisá-lo de que aquela não era uma boa ideia, mas ele não
me deu ouvidos.
Olhei para minha mãe.
— Você não contou a ele a verdade sobre mim, contou?
Ela tamborilava os dedos nervosamente no volante. Estava vestida
para uma entrevista de emprego — seu melhor vestido azul e
sapatos de salto alto.
— Pensei que seria melhor esperarmos — ela admitiu.
— Para não o espantarmos.
— Tenho certeza de que vai dar tudo certo na visita de orientação,
Percy. É só uma manhã.
— Ótimo — murmurei. — Posso ser expulso antes mesmo de
começar o ano letivo.
— Pense positivo. Amanhã você vai para o acampamento! Depois
da orientação, você tem o encontro…
— Não é um encontro! — protestei. — É só a Annabeth,
mãe. Puxa!
— Ela está vindo do acampamento até aqui para ver você.
— É, eu sei.
— Vocês vão ao cinema.
— Sim.
— Só os dois.
— Mãe!
Ela ergueu as mãos em sinal de rendição, mas eu podia ver que
estava fazendo força para não rir.
— É melhor entrar, querido. Até a noite.
Eu estava prestes a sair do carro quando olhei para a escadaria
da escola. Paul Blofi s cumprimentava uma garota de cabelos ruivos
frisados. Ela vestia uma camiseta marrom e um jeans surrado
[11]
customizado com desenhos feitos com caneta hidrográfi ca. Quando
se virou, vi seu rosto de relance, e os pelos do meu braço se eriçaram.
— Percy? — chamou minha mãe. — O que foi?
— N-nada — gaguejei. — A escola tem uma entrada lateral?
— Descendo a rua, à direita. Por quê?
— Até mais tarde.
Mamãe começou a dizer algo, mas saltei do carro e corri, torcendo
para que a garota ruiva não me visse.
O que ela estava fazendo ali? Nem mesmo a minha sorte poderia
ser assim tão ruim.
Pois, sim. Eu estava prestes a descobrir que minha sorte poderia
ser muito pior.
Entrar sorrateiramente na escola não deu muito certo. Duas líderes
de torcida de uniforme roxo e branco estavam na entrada
lateral, esperando para emboscar os calouros.
— Oi! — Elas sorriram, e eu deduzi que aquela era a primeira
e a última vez que uma líder de torcida seria tão simpática comigo.
Uma delas era loura, com gélidos olhos azuis. A outra era
afro-americana, com cabelos escuros e enroscados como o da Medusa
(e, pode acreditar, eu sei do que estou falando). Ambas tinham
o nome bordado em letras cursivas no uniforme, mas, com a minha
dislexia, as palavras pareciam espaguete, sem nenhum sentido.
— Bem-vindo à Goode — disse a loura. — Você vai amar
muito isso aqui.
Mas, enquanto me olhava de cima a baixo, sua expressão parecia
dizer algo como: Argh, quem é este perdedor?
A outra garota se aproximou tanto que me senti desconfortável.
Examinei o bordado em seu uniforme e consegui decifrar Kelli. Ela
cheirava a rosas e a algo que reconheci das aulas de equitação no
[12]
acampamento — o cheiro de cavalos recém-lavados. Era um perfume
estranho para uma líder de torcida. Talvez tivesse um cavalo,
ou algo assim. De qualquer modo, ela estava tão perto de mim que
tive a sensação de que ia tentar me empurrar escada abaixo.
— Qual o seu nome, calo?
— Calo?
— Calouro.
— Hã, Percy.
As garotas trocaram olhares.
— Ah, Percy Jackson — disse a loura. — Estávamos à sua espera.
Isso fez um intenso arrepio de Ah, não! percorrer minha espinha.
Elas estavam bloqueando a entrada, sorrindo de uma forma nada
amistosa. Minha mão instintivamente se dirigiu ao bolso onde eu
guardava minha caneta esferográfi ca letal, Contracorrente.
Então outra voz veio do interior do prédio:
— Percy? — Era Paul Blofi s, de algum ponto adiante no corredor.
Eu nunca me sentira tão feliz por ouvir a voz dele.
As líderes de torcida recuaram. Eu estava tão ansioso em passar
por elas que acidentalmente esbarrei o joelho na coxa de Kelli.
Clang.
Sua perna emitiu um ruído metálico e oco, como se eu tivesse
acabado de atingir o mastro de uma bandeira.
— Ai — murmurou ela. — Preste atenção, calo.
Olhei para baixo, mas aquela parecia uma perna comum. Eu
estava apavorado demais para fazer perguntas. Avancei apressadamente
para o corredor, as duas garotas rindo atrás de mim.
— Aí está você! — exclamou Paul. — Bem-vindo à Goode!
— Ei, Paul… hã, sr. Blofi s. — Olhei para trás, mas as líderes de
torcida esquisitas haviam desaparecido.
[13]
— Percy, você está com cara de quem viu fantasma.
— É, hã…
— Ouça, eu sei que está nervoso, mas não se preocupe. —
Paul me deu um tapinha nas costas. — Temos uma porção de
garotos aqui com dislexia, transtorno de défi cit de atenção e hiperatividade.
Os professores sabem como ajudar.
Eu quase tive vontade de rir. Como se meus maiores problemas
fossem a dislexia, o transtorno de défi cit de atenção e a hiperatividade…
Bem, eu sabia que Paul estava tentando ajudar, mas, se
eu lhe contasse a verdade, ou ele pensaria que eu estava louco ou
sairia correndo e gritando. Aquelas líderes de torcida, por exemplo
— eu estava com um mau pressentimento em relação a elas…
Então olhei mais adiante no corredor e me lembrei de que
havia outro problema. A garota ruiva que eu vira na escadaria da
frente estava passando pela entrada principal.
Não me veja, rezei.
Mas ela me viu. Seus olhos se arregalaram.
— Onde é a orientação? — perguntei a Paul.
— No ginásio. Por ali. Mas…
— Tchau.
— Percy? — ele chamou, mas eu já estava correndo.
Pensei que a tivesse despistado.
Um grupo de garotos e garotas estava seguindo para o ginásio,
e logo eu era apenas um entre os trezentos adolescentes de 14 anos
amontoados nas arquibancadas. Uma banda tocava um grito de
guerra da escola, que soava desafi nado como se alguém estivesse
batendo em um saco de gatos com um taco de beisebol de metal.
Garotos mais velhos, provavelmente membros do grêmio estudantil,
estavam lá na frente, apresentando o uniforme da Goode,
[14]
com cara de: Ei nós somos o máximo. Professores circulavam no local,
sorrindo e apertando a mão dos alunos. As paredes do ginásio estavam
cobertas por grandes bandeiras roxas e brancas onde se lia:
bem-vindos, futuros alunos do primeiro ano, a goode é legal,
somos todos uma família, e um monte de outros slogans alegres
que me davam vontade de vomitar.
Nenhum dos outros futuros alunos tampouco parecia entusiasmado
por estar ali; afi nal, apresentar-se aos orientadores em
junho — enquanto as aulas só começam em setembro — não é
nada legal. Mas na Goode “Preparamos para a excelência cedo!”.
Pelo menos era o que dizia o folheto.
A banda parou de tocar. Um sujeito de terno de risca de giz
dirigiu-se ao microfone e começou a falar, mas o som reverberava
pelo ginásio e eu não tinha a menor ideia do que ele estava dizendo.
Daria no mesmo se ele estivesse gargarejando.
Alguém agarrou meu ombro.
— O que você está fazendo aqui?
Era ela: meu pesadelo ruivo.
— Rachel Elizabeth Dare — eu disse.
O queixo dela caiu, como se não pudesse acreditar que eu tivera
a ousadia de me lembrar de seu nome.
— E você é Percy não sei de quê. Não cheguei a saber seu
nome todo dezembro passado, quando você tentou me matar.
— Olhe, eu não estava… eu não queria… O que você está fazendo
aqui?
— O mesmo que você, eu acho. Orientação.
— Você mora em Nova York?
— Por quê? Achou que eu morasse na Barragem de Hoover?
Aquilo nunca me ocorrera. Sempre que eu pensava nela (e não
estou dizendo que eu pensava; ela só me passava pela cabeça de
[15]
tempos em tempos, está bem?), imaginava que morasse perto da
Barragem de Hoover, já que fora lá que eu a conhecera. Havíamos
passado acho que uns dez minutos juntos, e nesse meio-tempo
eu acidentalmente a golpeara com uma espada, ela salvara minha
vida e eu fugira correndo, perseguido por um bando de máquinas
assassinas sobrenaturais. Sabe, um encontro assim… bem comum.
Um garoto atrás de nós murmurou:
— Ei, calem a boca. As líderes da torcida estão falando!
— Oi, pessoal! — disse efusivamente uma garota ao microfone.
Era a loura que eu vira na entrada. — Meu nome é Tammi, e
esta é, bem, Kelli. — Kelli deu uma estrela.
A meu lado, Rachel gritou como se alguém a tivesse espetado
com um alfi nete. Alguns garotos olharam na direção dela e soltaram
uma risadinha abafada, mas Rachel continuou encarando fi xamente
as líderes de torcida, aterrorizada. Tammi não pareceu perceber a
agitação. Ela começou a falar sobre todas as atividades maravilhosas
nas quais poderíamos nos envolver em nosso primeiro ano.
— Corra — disse-me Rachel. — Agora.
— Por quê?
Ela não explicou. Abriu caminho até a lateral da arquibancada,
ignorando os professores de testa franzida e os resmungos dos
alunos nos quais pisava.
Eu hesitei. Tammi estava explicando que nos dividiríamos em
pequenos grupos e faríamos um tour pela escola. O olhar de Kelli
encontrou o meu e ela me dirigiu um sorriso divertido, como se
estivesse esperando para ver o que eu ia fazer. Ficaria mal se eu
saísse naquele momento. Paul Blofi s estava lá embaixo com os outros
professores. Ele fi caria imaginando qual era o problema.
Então pensei em Rachel Elizabeth Dare, e na habilidade especial
que ela demonstrara no último inverno na Barragem de Hoover.
[16]
Ela conseguira enxergar um grupo de seguranças que não eram guardas
de verdade, não eram nem humanos. Com o coração batendo forte,
eu me levantei e a segui, saindo do ginásio.
Encontrei Rachel na sala de música. Ela estava escondida atrás de
um tambor, na seção de percussão.
— Venha até aqui! — chamou. — Mantenha a cabeça baixa!
Eu me senti bastante bobo escondido atrás de alguns bongôs,
mas me agachei ao lado dela.
— Elas seguiram você? — perguntou Rachel.
— Está se referindo às líderes de torcida?
Ela assentiu, nervosa.
— Acho que não — eu disse. — O que elas são? O que foi
que você viu?
Seus olhos verdes brilhavam de medo. As sardas salpicadas no
rosto me lembravam constelações. Sua camiseta marrom dizia departamento
de arte de harvard.
— Você… você não iria acreditar em mim.
— Ah, iria sim — garanti. — Sei que consegue ver através da
Névoa.
— Do quê?
— Da Névoa. É… bem, é como um véu que esconde o que as
coisas são de verdade. Alguns mortais nascem com a habilidade de
enxergar através dela. Como você.
Ela me olhou com atenção.
— Você fez isso na Barragem de Hoover. Disse que eu era
mortal. Como se você não fosse.
Tive vontade de dar um soco em um bongô. O que eu estava
pensando? Nunca conseguiria explicar. Não deveria nem estar
tentando.
[17]
— Fale para mim — ela implorou. — Você sabe o que isso
quer dizer. Todas essas coisas horríveis que eu vejo?
— Olhe, isso vai soar estranho. Você sabe alguma coisa sobre
mitologia grega?
— Como… o Minotauro e a Hidra?
— Sim, mas tente não dizer esses nomes quando eu estiver por
perto, o.k.?
— E como as Fúrias — continuou ela, animando-se. — E como
as sereias, e…
— O.k.! — Dei uma olhada pela sala de música, certo de que
Rachel ia fazer um bando de criaturas asquerosas e sedentas de
sangue pular das paredes; mas ainda estávamos sozinhos. Mais à
frente, no corredor, ouvi um grupo de garotos saindo do ginásio.
Estavam começando o tour. Não tínhamos muito tempo para conversar.
— Todos aqueles monstros — eu disse —, todos os deuses
gregos… eles são de verdade!
— Eu sabia!
Teria me sentido mais à vontade se ela tivesse me chamado de
mentiroso, mas a expressão de Rachel mostrava que eu acabara
de confi rmar suas piores suspeitas.
— Você não sabe como é difícil — disse ela. — Durante anos
pensei que estivesse fi cando maluca. Eu não podia contar a ninguém.
Não podia… — Seus olhos se estreitaram. — Peraí. Quem
é você? Quer dizer, de verdade?
— Eu não sou um monstro.
— Bem, disso eu sei. Eu veria se você fosse. Você parece… você.
Mas não é humano, é?
Engoli em seco. Embora tivesse tido três anos para me acostumar
a ser quem era, eu nunca havia falado a respeito disso com um
[18]
mortal comum — isto é, exceto com minha mãe, mas ela já sabia.
Não sei por quê, mas resolvi me arriscar.
— Sou um meio-sangue — eu disse. — Sou metade humano.
— E metade o quê?
Nesse momento Tammi e Kelli entraram na sala de música.
As portas se fecharam atrás delas com estrondo.
— Aí está você, Percy Jackson — disse Tammi. — Chegou a
hora da sua orientação.
— Elas são horríveis! — suspirou Rachel.
Tammi e Kelli ainda usavam o uniforme roxo e branco de líderes
de torcida, segurando os pompons da apresentação.
— Qual é a aparência real delas? — perguntei, mas Rachel
parecia perplexa demais para responder.
— Ah, deixe ela para lá! — Tammi me lançou um sorriso brilhante
e começou a caminhar na minha direção. Kelli permaneceu
na porta, bloqueando nossa saída.
Elas nos haviam apanhado em uma armadilha. Eu sabia que
teríamos de lutar para escapar, mas o sorriso de Tammi era tão
deslumbrante que me distraía. Seus olhos azuis eram lindos, e o
modo como os cabelos balançavam nos ombros…
— Percy — advertiu Rachel.
Eu disse algo muito inteligente, do tipo:
— Hein?
Tammi estava se aproximando. Ela estendeu os pompons.
— Percy! — A voz de Rachel parecia vir de um lugar muito
distante. — Dê o fora daí!
Precisei usar toda a minha força de vontade, mas consegui pegar
a caneta no bolso e destampá-la. Contracorrente então se transformou
em uma espada de bronze de noventa centímetros, a lâmina
[19]
brilhando com uma suave luz dourada. O sorriso de Tammi tornou-se
uma expressão de escárnio.
— Ah, pare com isso! — protestou ela. — Você não precisa
disso. Que tal um beijo, em vez dessa coisa?
Ela cheirava a rosas e a pelo limpo de animal — um aroma
estranho, mas de alguma forma intoxicante.
Rachel beliscou meu braço com força.
— Percy, ela quer morder você! Olhe para ela!
— Ela só está com ciúme. — Tammi olhou na direção de
Kelli. — Posso, senhora?
Kelli ainda estava bloqueando a porta, lambendo os lábios,
faminta.
— Vá em frente, Tammi. Está indo bem.
Tammi avançou mais um passo, mas apontei a espada contra
seu peito.
— Para trás!
Ela rosnou.
— Calouros — disse, com desprezo. — Esta é a nossa escola,
meio-sangue. Nós nos alimentamos de quem escolhemos!
Então ela começou a fi car diferente. A cor se esvaiu de seu rosto
e de seus braços. A pele se tornou branca como giz, os olhos, completamente
vermelhos. Os dentes cresceram e viraram presas.
— Uma vampira! — balbuciei. Então notei suas pernas. Abaixo
da saia do uniforme, a perna esquerda era marrom e peluda,
com um casco de burro. A direita tinha o formato de uma perna
humana, mas era feita de bronze. — Hã, uma vampira com…
— Não fale das pernas! — disse Tammi. — É grosseiro zombar
disso!
Ela avançou com suas pernas estranhas, descombinadas. Parecia
totalmente bizarra, mais ainda com os pompons, mas eu não
[20]
conseguia rir — não encarando aqueles olhos vermelhos e as presas
afi adas.
— Uma vampira, você disse? — Kelli riu. — Essa lenda boboca
foi inspirada em nós, seu tolo. Somos empousai, servas de Hécate.
— Hummm. — Tammi aproximou-se ainda mais. — A magia
negra nos criou a partir de um animal, do bronze e de fantasmas!
Existimos para nos alimentar do sangue de homens jovens. Agora
venha e me dê aquele beijo!
Ela mostrou as presas. Fiquei paralisado, sem conseguir me
mover, mas Rachel jogou um tarol na cabeça da empousa.
O demônio sibilou e, com um golpe, desviou o tarol, que foi
rolando pelos corredores entre os suportes de partituras, as molas
chocalhando de encontro ao couro. Rachel lançou então um xilofone,
mas o demônio também o desviou com um tapa.
— Geralmente não mato garotas — grunhiu Tammi. — Mas
para você, mortal, vou abrir uma exceção. Você enxerga um pouquinho
demais!
Ela investiu contra Rachel.
— Não! — Desferi um golpe com Contracorrente. Tammi
tentou esquivar-se à lâmina, mas consegui perfurar seu uniforme
de líder de torcida, e com um gemido horrível ela explodiu em
uma nuvem de pó sobre Rachel.
Rachel tossiu. Parecia que tinham acabado de jogar um saco de
farinha em cima dela.
— Que nojo!
— Isso acontece com os monstros — eu disse. — Desculpe-me.
— Você matou minha estagiária! — gritou Kelli. — Precisa de
uma lição sobre espírito esportivo, meio-sangue!
Então ela também começou a se transformar. Os cabelos crespos
tornaram-se chamas bruxuleantes. Os olhos fi caram vermelhos.
[21]
As presas cresceram. Ela veio em nossa direção, o pé de bronze e o
casco ressoando descompassados no piso da sala de música.
— Eu sou a empousa sênior — grunhiu. — Nenhum herói me
derrota há mil anos.
— Mesmo? — perguntei. — Então já passou da validade!
Kelli era bem mais rápida que Tammi. Esquivou-se ao meu primeiro
golpe e rolou para a seção de metais, derrubando uma fi leira
de trombones com um ruído altíssimo. Rachel saiu do caminho.
Coloquei-me entre ela e a empousa. Kelli nos rodeou, os olhos indo
de mim para a espada.
— Uma laminazinha tão linda — disse ela. — Que pena que
está entre nós dois.
Sua forma tremeluzia — às vezes um demônio, às vezes uma
linda líder de torcida. Eu tentava manter a mente focada, mas
aquilo era muito perturbador.
— Pobrezinho — riu Kelli. — Você não sabe nem o que está
acontecendo, não é? Logo seu lindo acampamentozinho estará em
chamas, seus amigos se tornarão escravos do Senhor do Tempo, e não
há nada que possa fazer para evitar isso. Seria até misericordioso dar
um fi m à sua vida agora, antes que tenha tempo de assistir a tudo.
Eu ouvia vozes vindo do fi m do corredor. Um grupo fazendo
o tour se aproximava. Um homem falava algo sobre combinação de
cadeados.
Os olhos da empousa se iluminaram.
— Excelente! Vamos ter companhia!
Ela apanhou uma tuba e a lançou contra mim. Rachel e eu nos
abaixamos. A tuba voou sobre nossas cabeças e quebrou a janela.
As vozes no corredor se calaram.
— Percy! — gritou Kelli, fi ngindo-se assustada. — Por que
você atirou aquilo?
[22]
Eu estava surpreso demais para responder. Kelli pegou um suporte
de partitura e atingiu uma fi leira de clarinetas e fl autas. Cadeiras
e instrumentos musicais desabaram no chão com um estrondo.
— Pare! — eu gritei.
As pessoas agora disparavam pelo corredor, vindo em nossa
direção.
— Hora de cumprimentar os nossos visitantes! — Kelli
arreganhou as presas e correu para as portas. Fui atrás dela com
Contracorrente. Precisava evitar que ela ferisse os mortais.
— Percy, não! — gritou Rachel. Mas eu não percebi o que
Kelli pretendia até que fosse tarde demais.
Kelli abriu as portas. Paul Blofi s e um grupo de calouros recuaram,
em choque. Eu ergui minha espada.
No último segundo, a empousa se virou para mim como uma
vítima apavorada.
— Ah, não, por favor! — gritou.
Eu não podia parar a lâmina, que já estava em movimento.
Segundos antes de o bronze celestial atingi-la, Kelli explodiu
em chamas como um coquetel molotov. Ondas de fogo lançaram-se
sobre tudo. Eu nunca vira um monstro fazer algo assim, mas não
tinha tempo para pensar no assunto. Recuei para a sala de música
enquanto as chamas engoliam o vão de entrada.
— Percy? — Paul Blofi s parecia totalmente atônito, fi tando-me
através do fogo. — O que você fez?
Adolescentes gritavam e corriam pelo corredor. O alarme de
incêndio soava. Os sprinklers no teto silvavam, ganhando vida.
Em meio ao caos, Rachel me puxou pela manga da camisa.
— Você precisa sair daqui!
Ela estava certa. A escola estava em chamas e a culpa seria
atribuída a mim. Os mortais não conseguiam ver com perfeição
[23]
através da Névoa. Para eles, pareceria que eu atacara uma garota
indefesa diante de um grupo de testemunhas. Não havia como eu
explicar. Dei as costas para Paul e disparei para a janela da sala de
música destruída.
Saí da viela na 81 Leste e dei de cara com Annabeth.
— Ei, você saiu cedo! — Ela riu, agarrando meus ombros para
evitar que eu me estatelasse no chão. — Olhe para onde está indo,
Cabeça de Alga.
Por uma fração de segundo ela estava de bom humor e tudo
corria bem. Vestia jeans e a camisa laranja do acampamento, e usava
o colar de contas de cerâmica. O cabelo louro estava preso
em um rabo de cavalo. Os olhos cinzentos brilhavam. Ela parecia
pronta para ir ao cinema e passar uma tarde divertida comigo.
Então Rachel Elizabeth Dare, ainda coberta de poeira de
monstro, veio correndo pela viela, gritando:
— Percy, espere!
O sorriso de Annabeth se desfez. Ela olhou para Rachel e, em
seguida, para a escola. Foi então que pareceu notar a fumaça negra
e o som dos alarmes de incêndio.
Ela me olhou, franzindo a testa.
— O que foi que você fez dessa vez? E quem é essa?
— Ah, Rachel… Annabeth. Annabeth… Rachel. Hã, ela é uma
amiga, acho.
Eu não sabia ao certo como chamar Rachel. Quer dizer, eu
mal a conhecia, mas, depois de estarmos juntos duas vezes em
situações de vida ou morte, eu não podia simplesmente dizer que
ela não era ninguém.
— Oi — disse Rachel, e então se virou para mim: — Você
está muito encrencado. E ainda me deve uma explicação!
[24]
As sirenes da polícia gemiam na FDR Drive.
— Percy — Annabeth falou com frieza. — Precisamos ir.
— Quero saber mais sobre meios-sangues — insistiu Rachel.
— E monstros. E essa história dos deuses. — Ela agarrou meu
braço, pegou uma caneta permanente e escreveu um número de
telefone em minha mão. — Vai me ligar e explicar tudo, o.k.? Você
me deve isso. Agora vá.
— Mas…
— Vou inventar uma história — disse Rachel. — Vou dizer a
eles que não foi culpa sua. Mas vá!
Ela voltou correndo para a escola, deixando-me na rua com
Annabeth.
Annabeth me encarou por um segundo. Então se virou e começou
a correr.
— Ei! — Fui atrás dela. — Lá dentro tinha duas empousai —
tentei explicar. — Eram líderes de torcida, sabe, e disseram que o
acampamento ia pegar fogo, e…
— Você contou a uma garota mortal sobre os meios-sangues?
— Ela pode ver através da Névoa. Viu os monstros antes que
eu os notasse.
— Então você contou a ela a verdade.
— Ela me reconheceu da Barragem de Hoover…
— Você a tinha encontrado antes?
— Hã… O inverno passado. Mas, sério, eu mal a conheço.
— Ela é bem bonitinha.
— Eu… eu nunca reparei nisso.
Annabeth continuava andando na direção da avenida York.
— Vou resolver a história da escola — prometi, ansioso para
mudar de assunto. — De verdade, vai fi car tudo bem.
Annabeth nem mesmo me olhava.
[25]
— Acho que nossa tarde já era. É melhor tirarmos você daqui,
agora que a polícia vai sair à sua procura.
Atrás de nós, a fumaça se erguia da Goode High School em
ondas. Na coluna escura de cinzas tive a impressão de quase enxergar
um rosto — um demônio feminino, de olhos vermelhos,
rindo de mim.
Seu lindo acampamentozinho em chamas, dissera Kelli. Seus amigos transformados
em escravos do Senhor do Tempo.
— Você tem razão — disse a Annabeth, com o coração apertado.
— Precisamos ir para o Acampamento Meio-Sangue. Agora.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias