"As impressões de quem visita o Haiti são indeléveis": clique aqui para ler o relato do repórter da ISTOÉ Claudio Dantas Sequeira, que percorreu o Haiti em 2006, muito antes do trágico terremoto da semana passada

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TERRA ARRASADA
 A capital Porto Príncipe, onde imperam a destruição e o caos

Sete mil corpos já foram enterrados em valas comuns. Milhares de outros estão sob escombros ou empilhados pelas ruas da capital Porto Príncipe. Feridos e desabrigados caminham a esmo em busca de socorro. A água se tornou o bem mais precioso no Haiti arrasado por um terremoto com capacidade destrutiva equivalente à de 25 bombas atômicas. Com epicentro a apenas 15 quilômetros de Porto Príncipe, o fenômeno registrado às 16h53 locais da terça-feira 12 multiplicou uma miséria secular. No dia seguinte à catástrofe “inimaginável”, como definiu o presidente René Préval, ele mesmo foi encontrado na rua por uma equipe da rede americana CNN em aparente estado de choque. Préval sintetizou então o sentimento de uma nação: “Não tenho onde dormir.” No dia seguinte, Préval ajudou a enterrar os primeiros corpos resgatados dos escombros. Com um terço da população de nove milhões de habitantes atingido pela catástrofe, o Haiti virou um dos mais graves episódios de emergência humanitária da história.

Tragédia sem fim O cenário é de absoluto terror. No país sem infraestrutura, os já precários sistemas de energia, de comunicação e de abastecimento de água entraram em colapso. Como o Haiti não tem Defesa Civil, os esforços iniciais de resgate foram feitos por funcionários da ONU, militares e cidadãos comuns, a maioria desesperada em busca de familiares desaparecidos. À medida que o tempo passa, aumentam os riscos de que epidemias se alastrem. Quando todos os mortos forem enterrados e os feridos tratados é que se começará a dimensionar o legado dessa tragédia sem fim. “A situação vai piorar. Muitas outras pessoas vão acabar morrendo”, afirma o radialista haitiano Carel Pedre. Algumas, no momento, querem apenas resgatar aqueles que amam. É o caso do vendedor ambulante Lionnel Dervil, pai de quatro filhos: “Eu só quero o corpo da minha mulher. Sei que estão ocupados tratando dos sobreviventes, mas há uma divisão cheia de corpos onde não consigo chegar”.

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VALA COMUM
 Corpos amontoados, busca heroica e saques aumentam o desespero e a dor da população

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Os principais símbolos do Haiti – o palácio do governo e a catedral – viraram pó, apagando os últimos resquícios da colonização francesa. Também vieram ao chão o Parlamento, o Palácio da Justiça, os ministérios das Finanças, Comunicação, Trabalho e Cultura, os três hospitais da capital, o principal hotel e o prédio da Minustah, a missão de paz da ONU instalada no país desde 2004. Institucionalmente, o Haiti desapareceu. Parte de seu investimento no futuro ruiu quando os cinco andares da universidade desabaram sobre estudantes e professores. Segundo a Cruz Vermelha, 70% dos edifícios de Porto Príncipe foram destruídos.

O Brasil, por sua vez, nunca esteve tão envolvido em uma tragédia natural no Exterior. Como comandante militar das forças de paz da ONU, o Brasil mantém no país caribenho mais de 1,2 mil militares, que se voltaram desde o primeiro momento ao resgate e atendimento às vítimas do terremoto. A contagem do Ministério da Defesa até a sexta-feira 15 somava 15 brasileiros mortos em decorrência da catástrofe, entre eles a pediatra e sanitarista Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança (leia reportagem à pág. 40). Os outros 14 são militares, sete deles vindos do 5º Batalhão de Infantaria Leve, sediado em Lorena (SP), que, pelo sistema de rodízio da Minustah, deveriam voltar para casa neste final de semana. Moradora da cidade vizinha de Cachoeira Paulista, a dona de casa Dalila Anaya Henrique se preparava para receber o filho mais velho, o soldado Tiago, 23 anos: “Eu soube do terremoto, mas nem pensei que meu filho estaria morto.”

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SOBREVIVÊNCIA
No país onde 80% são miseráveis, a pobreza piorou e a água virou o bem mais precioso

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Há ainda 25 militares brasileiros feridos e quatro desaparecidos. Para o ministro da Defesa, Nelson Jobim, há poucas chances de encontrá-los com vida. “Falar em sobreviventes é eufemismo”, disse. Além deles, também está desaparecido o diplomata Luiz Carlos da Costa, número dois da Minustah. Aos 60 anos, casado e com duas filhas, Costa é o brasileiro de maior hierarquia na ONU. Com toda a carreira dedicada a missões de paz, ele pediu há poucas semanas que o secretário-geral Ban Ki-moon estendesse seu mandato no Haiti por mais um ano. O diplomata estava animado com a nomeação do ex-presidente Bill Clinton como enviado especial da ONU para o Haiti. A amigos, disse que havia um novo sopro de esperança para impulsionar projetos econômicos que pudessem gerar emprego e renda para a população. Além de Costa, 188 funcionários da Minustah estão desaparecidos e 36 mortos. O corpo do chefe da missão da ONU, o tunisiano Hedi Annabi, foi encontrado morto entre os escombros. No vácuo de autoridade, o comandante militar, o general brasileiro Floriano Peixoto, que estava na sede da ONU em Nova York, viajou a Porto Príncipe para assumir a missão até a chegada de Edmond Mulet, antecessor de Annabi, indicado como responsável interino.

Sem classe média “Está tudo acabado. Teremos que recomeçar do zero”, disse o brasileiro Ricardo Seitenfus, representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) para o Haiti. Com 80% dos habitantes vivendo abaixo da linha de pobreza, o Haiti era um país agonizante que levou um golpe sem precedentes. A Cruz Vermelha estima em até 50 mil as mortes provocadas pelo terremoto, mas esse número pode aumentar à medida que avançar o trabalho das equipes de resgate enviadas das mais diversas partes do mundo. Um dos maiores entraves para os trabalhos de socorro e para a reconstrução do país está na própria composição da sociedade haitiana. Na prática, não há ligação entre a elite formada na França ou no Canadá e a massa de miseráveis. “Tem um ministro da Educação muito bem formado, com cursos no exterior, mas não há um grupo intermediário que faça funcionar o projeto escolar”, exemplifica o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que chefiou a missão de paz da ONU entre janeiro de 2007 e abril de 2009.

A inexistência de uma classe média com profissionais capacitados a fazer escoar a ajuda humanitária internacional que começa a chegar agrava ainda mais a desgraça que se abateu sobre o país. Com as ruas bloqueadas por destroços de todos os gêneros, as equipes que desembarcam no Haiti têm dificuldade até de locomoção. “Acreditamos que há três milhões de pessoas afetadas no país, feridas ou desabrigadas”, afirmou Victor Jackson, coordenador-assistente da Cruz Vermelha no Haiti. Sem abrigo, água ou comida, muitos haitianos circulam a esmo pelas ruas e dormem ao relento, aglomerando-se principalmente no centro de Porto Príncipe e no estádio que abrigou o Jogo da Paz em 2005, entre as seleções de futebol do Brasil e do Haiti.

Antiga colônia francesa, o Haiti chegou a ser conhecido no final do século XVIII como a “pérola das Antilhas”, por conta de sua exuberante cultura do açúcar, o petróleo da época. Inspirado na Revolução Francesa e com base em uma revolução de escravos, foi o primeiro país da América Latina a conquistar a independência, em 1804. Foi também o primeiro a acabar com o regime escravocrata. De lá para cá, porém, as tragédias que assolam o país são tamanhas que existe entre os organismos de ajuda humanitária o temor de que a comunidade internacional tenha se cansado do país.

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Resgate pedra por pedra “Não desistam do Haiti como se fosse uma causa perdida”, apelou Bill Clinton em um comovente pedido de ajuda ao país, tentando sensibilizar governos e também as pessoas comuns. Aos primeiros, pediu de imediato a cessão de helicópteros para o socorro aos feridos. “Precisamos também de água, comida, abrigos e primeiros-socorros. O mais imediato que podem fazer é enviar dinheiro, mesmo um ou dois dólares”, completou, em parte de discurso na Assembleia-Geral da ONU, dirigindo-se aos cidadãos.
Cerca de 30 países, entre eles Estados Unidos, Brasil, França, Canadá, Cuba, China, Argentina, Venezuela e Israel, se mobilizaram de imediato. O presidente americano, Barack Obama, foi o mais generoso. Na quinta-feira 14, Obama anunciou a liberação de US$ 100 milhões para a recuperação do país caribenho, além do envio de dez mil soldados e fuzileiros, 300 médicos, um porta-aviões e um navio-hospital. No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou a liberação de US$ 15 milhões e a criação de um gabinete de crise coordenado pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Jorge Félix.

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No país que faz resgates à mão, pedra por pedra, devido à ausência de equipamentos adequados, as perspectivas para o futuro são dramáticas. Além das colossais – e imediatas – perdas, há o risco de o Haiti voltar a um estado selvagem, submergindo numa crise político-institucional similar à que protagonizou no começo da década de 1990. Com as forças internacionais de paz concentradas nas buscas aos sobreviventes e uma polícia precária, a segurança pública está ameaçada. O principal presídio do Haiti desabou com o tremor, deixando escapar um número ainda não conhecido de detentos. Na quinta-feira 14, um caminhão que tentava vender água na periferia de Porto Príncipe foi atacado por moradores sedentos. Na madrugada do mesmo dia, o porta-voz da ONG Viva Rio, Valmir Fachini, informou por e-mail que as ruas de Porto Príncipe viraram palco de saques. “Ouvimos vários disparos de armas de fogo sem poder dizer de onde vêm. Os saques começaram nos supermercados, que desabaram parcialmente”, contou Fachini, usando a internet, o único meio de comunicação que sobreviveu ao terremoto por usar no país o sistema de transmissão via satélite.

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Antes de o tremor jogar o Haiti no chão, 2010 representava um importante passo para a normalização do país que, em 200 anos de história, sofreu 32 golpes militares. Desde o fim da ditadura de Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, em 1986, os haitianos sonham com uma democracia que abra caminho para instituições democráticas sólidas. As eleições legislativas estavam marcadas para o mês que vem e as presidenciais para novembro. Antes de o desastre natural lembrar ao mundo que o Haiti existe, o país já era uma miséria só. O simples cruzar de sua fronteira com a República Dominicana – país com o qual ocupa a ilha de Hispaniola, no Mar do Caribe – é uma experiência chocante. Assim que passa a divisa, o verde das florestas dominicanas cede lugar ao cinza de um deserto tropical. A porção oeste da ilha, ocupada pelo Haiti, tem aparência de terra arrasada – reflexo do desmatamento para produzir o carvão que gera a energia usada pelo mais pobre país do continente. O que parecia não poder ficar pior, ficou.

A Presença Brasileira

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A presença das tropas brasileiras no Haiti é resultado de compromisso assumido pelo governo em 2004, quando a ONU estabeleceu a Minustah, a missão multinacional convocada depois que uma crise política apeou do poder o presidente Jean-Bertrand Aristide e mergulhou o país no caos institucional.

O mosaico de barbárie formado por ex-militares, membros da polícia nacional e milícias governistas fez reféns civis inocentes, submetidos a toques de recolher e atos de violência extrema. No cálculo do Itamaraty, o protagonismo numa operação de paz é a chance para credenciar o Brasil na campanha por um assento no Conselho de Segurança da ONU.

O primeiro brasileiro a pisar em Porto Príncipe foi o general Augusto Heleno, que se deparou com o caos e a falta de recursos. Por meses, ele se viu premido por um contingente reduzido, bem aquém do previsto pela ONU. O problema só foi resolvido no ano seguinte, mas a situação de instabilidade perdurou por quase um ano e meio. Pacificadas as favelas do Haiti, as tropas brasileiras intensificaram as ações de apoio social e de infraestrutura, mudando o perfil da missão. Dos 1.246 militares, 230 são engenheiros, que trabalham na pavimentação de rodovias, construção de pontes e perfuração de poços artesianos. Segundo a ONU, a missão hoje tem o apoio de 78% da população. Até agora, o Brasil já desembolsou R$ 704,5 milhões com ações no Haiti, doou 500 mil doses de vacina contra a raiva e desenvolve com a França o projeto do banco de leite materno.A Agência Brasileira de Cooperação investe ainda US$ 16 milhões em projetos na área de agricultura familiar, coleta de lixo e formação de militares.

Colaboraram: Adriana Prado, André Julião e Fabiana Guedes

 

 


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