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A morte do primeiro filho, Marcelo, com apenas dois dias, foi um marco na vida da então jovem médica Zilda Arns Neuman, na década de 60. Após experimentar uma das piores dores que o ser humano pode enfrentar, ela decidiu dedicar sua vida para que cada vez menos mães passassem pelo mesmo sofrimento. Foram anos de estudo e trabalho a fim de descobrir como salvar as crianças do trágico destino da morte por diarreia e desnutrição, típicas da pobreza. Com medidas simples, articulou um programa engenhoso que salvou a vida de milhões de brasileiros ao reduzir a mortalidade infantil no País. Em 1983, quando fundou a Pastoral da Criança, com dom Geraldo Majella Agnello – atual cardeal-arcebispo de Salvador – e a chancela da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de cada mil crianças de até 5 anos, 83 faleciam. Hoje são 19. Por sua dedicação, Zilda tornou-se um exemplo, principalmente para quem crê em um mundo melhor. Ela, que mudou o destino de tantos brasileirinhos, já tinha o seu traçado. Morreu aos 75 anos, na terça-feira 12, no terremoto que destroçou o Haiti. Havia acabado de discursar em uma igreja sobre o projeto da Pastoral quando uma parte do teto a atingiu. Morreu defendendo sua causa. Zilda mostrou que cuidados simples fariam a diferença na qualidade de vida de quem convive com a pobreza. O uso do soro caseiro (uma mistura de água, sal e açúcar) para evitar desidratação, a pesagem das crianças uma vez por mês, o incentivo ao aleitamento materno, o aproveitamento máximo dos alimentos e a importância do pré-natal são algumas das ações que transformaram tanto periferias das grandes cidades quanto rincões da Amazônia.

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PRESENTE
Aos 75 anos, a médica Zilda arns participava ativamente das ações de sua Pastoral da criança

O segredo do sucesso foi a percepção de que, para funcionar, mais do que recursos, a Pastoral deveria engajar e capacitar pessoas da própria comunidade no projeto, embrião do programa Saúde da Família do governo federal. Hoje, a entidade está presente nos 27 Estados do Brasil e em outros 19 países. Aqui, conta com 262 mil voluntários e assiste mensalmente dois milhões de crianças e 80 mil gestantes. Com este trabalho, Zilda teve o impacto do sanitarista Oswaldo Cruz, pelo alcance das medidas em prol da saúde, e do sociólogo Betinho, pela capacidade de mobilização. “Ela foi nossa Madre Teresa”, compara Hélio Bicudo, presidente da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FidDH). Zilda mostrava em pequenos gestos o respeito e a consideração pela população carente. Além de um constante sorriso no rosto, estava sempre elegante e maquiada – embora só tenha descoberto o batom aos 60 anos –, seja nos palácios, seja na favela. Bicudo afirma que, apesar de ter feito tanto, ela ainda tinha novos planos. Deu início, em 2004, à Pastoral da Pessoa Idosa para valorizar e assegurar a dignidade dos mais velhos com programas de acompanhamento da saúde e do bem-estar. Hoje, 129 mil idosos estão sob os cuidados de 14 mil voluntários. A médica já é considerada uma das principais humanistas brasileiras. Seu trabalho lhe rendeu quatro indicações do governo federal ao Prêmio Nobel da Paz, além de vários outros prêmios e homenagens nacionais e internacionais. Há algum tempo, Zilda preparava uma equipe de confiança na Pastoral para que a entidade caminhasse sozinha no futuro, sem sua marcante presença. “Desde o início, ela sabia que a obra que construiu não poderia ficar centrada em sua autoridade”, diz o padre Geraldo Martins, da CNBB. O que conforta a família e os amigos é saber que Zilda partiu fazendo o que mais gostava. “A mensagem que ela deixa é de união para se conseguir tudo, não desistir nunca”, afirma seu filho Rubens Arns.

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IRMÃOS
Dom Paulo Evaristo e Zilda: uma família solidária

Arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, irmão de Zilda, disse em nota que ela “teve uma morte bonita, defendendo o que acreditava”. Zilda desdobrou-se para ser a profissional que foi. Muitas vezes, deixou os cinco filhos sob os cuidados do marido, o contador Aloysio, para aperfeiçoar seus conhecimentos em pediatria e sanitarismo. Em 1972, grávida, fez uma especialização de três meses na Colômbia. Em 1977, ia para casa, em Curitiba, apenas nos fins de semana, até conseguir o diploma em educação em saúde materno-infantil pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). No ano seguinte, ficou viúva do companheiro incentivador. Anos mais tarde, perdeu a filha Silvia em um acidente de carro. Mais velha dos dez netos, Alessandra, 18 anos, aguarda o resultado da aprovação no vestibular para design, enquanto conta que a avó queria mesmo vê-la cursando pedagogia. “Ela dizia que o futuro do mundo é via educação”, afirma a jovem, para quem Zilda preparava o café da manhã todos os dias, após se levantar, às 5h. Nascida em Forquilhinha, Santa Catarina, numa casa onde cresceu com 12 irmãos, aprendeu ainda menina a importância de estender a mão ao próximo. “Minha família sempre esteve envolvida com atividades solidárias. Para mim, era natural”, disse a médica em 2008 à ISTOÉ. Que sirva de inspiração.

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