Junto com o arsenal nuclear, as armas químicas e biológicas constituem a demoníaca trindade das chamadas “armas de destruição em massa”. Mas, ao contrário das bombas atômicas, os agentes químicos e biológicos são baratos e relativamente fáceis de ser manipulados; por isso, ficaram conhecidos como a “bomba nuclear dos pobres”. Muitos países do Terceiro Mundo estocaram ou ainda estocam esse tipo de armamento devastador e alguns, como o Iraque e o Egito, fizeram uso deles. Mas a utilização militar de substâncias tóxicas letais, de forma generalizada e sistemática, aconteceu pela primeira vez pelas mãos das grandes potências: foi no front europeu durante a Primeira Grande Guerra (1914-18), mais precisamente na batalha de Ypres (França), em 1915, quando os alemães bombardearam as tropas inglesas com gás de cloro. Até o fim daquela carnificina, em 1918, Alemanha, França e Grã-Bretanha usaram em larga escala gases letais, como o fosgênio e o mostarda, principalmente. Quase 70 mil combatentes morreram, fixando no imaginário ocidental aquela apocalíptica imagem de soldados com máscaras contra gases. O impacto foi tão devastador que impediu o uso dessas armas no front da Segunda Guerra Mundial.

Mas as armas químicas não foram uma invenção dos tempos modernos. Em História da Guerra do Peloponeso, sobre o longo conflito entre Atenas e Esparta, de 431 a.C. a 404 a.C., Tucídides narra como as tropas espartanas utilizaram, de maneira rudimentar, gases de enxofre para atacar seus inimigos atenienses. Já as legiões do Império Romano tiveram a idéia de jogar animais mortos em cisternas de água do inimigo, para espalhar doenças e atingir o moral das tropas adversárias. No século XIV, os tártaros da Criméia, na Ucrânia, catapultaram corpos humanos infectados com peste bubônica para além dos muros da cidade de Kaffa, (hoje Feodosiya), às margens do mar Negro, então dominada pelos genoveses. Os resultados militares conhecidos foram pequenos, mas alguns historiadores sustentam a tese de que a Peste Negra, pandemia que assolou a Europa naquela época e dizimou um quarto de sua população, teve origem nas cercanias de Kaffa.

Mas foram os britânicos os primeiros a devastar as fileiras inimigas com a ajuda de métodos biológicos. A chance veio no final das guerras Franco-Indígenas (1754-63), quando a Grã-Bretanha derrotou a França na luta pelo Canadá. Lord Jeffrey Amherst, o comandante-em-chefe das forças britânicas na América, mandou distribuir cobertores e mantas contaminados com varíola para infectar as tropas indígenas do chefe Pontiac, que lutaram ao lado dos franceses e não aceitavam seus novos senhores. O general, que tratava os inimigos franceses derrotados com dignidade cavalheiresca, nutria um ódio visceral pelos nativos e prometia usar “qualquer método que possa servir para exterminar essa raça execrável”. A alma britânica tem realmente razões que a razão desconhece. Até mesmo o venerável Winston Churchill, implacável adversário da barbárie nazista, jamais escondeu seu desprezo por povos considerados “inferiores”. Em 1919, quando era secretário de Estado da Guerra, Churchill ordenou o uso de armas químicas contra a minoria curda do Iraque, que se rebelou contra a ocupação britânica. “Eu não entendo essa sensibilidade toda pelo uso do gás”, disse ele, entre uma baforada e outra de seu charuto. “Sou fortemente favorável a usá-lo contra tribos não civilizadas.”

Massacre – Pobres curdos iraquianos: sempre ficam do “lado errado”. Em 1988, quase no fim dos oito anos da sangrenta guerra Irã-Iraque, a soldadesca do ditador Saddam Hussein bombardeou cidadelas curdas no Iraque, principalmente Halabja, com gás mostarda e sarin. Pelo menos cinco mil pessoas foram dizimadas, entre elas muitas crianças. O tirano queria punir a guerrilha curda, que dera apoio aos iranianos. O massacre chocou a opinião pública esclarecida, mas o governo dos EUA fez ouvidos de mercador e não apenas manteve os créditos ao Iraque como o então presidente Ronald Reagan vetou sanções econômicas que o Congresso tentou impor a Bagdá. Afinal, na época Saddam era o queridinho da Casa Branca, já que ele lutava contra a revolução islâmica que o Irã do aiatolá Khomeini queria exportar à região. Relatórios secretos revelam que Washington sabia, desde 1983, que o Iraque havia usado os mesmos gases letais para tentar conter as gigantescas ofensivas de “ondas humanas” dos iranianos. Sabia-se também que, com ajuda de multinacionais, Saddam estava construindo um complexo industrial de armas químicas.

As ditaduras, aliás, usaram e abusaram desse tipo de arma. As tropas de Mussolini jogaram gás mostarda contra civis na Abissínia (atual Etiópia) durante a invasão daquele país, em 1936. Os militares japoneses utilizaram diversas armas químicas quando invadiram a China, em 1937, e fizeram experiências biológicas com cobaias humanas durante a Segunda Guerra, matando cerca de três mil pessoas. Os nazistas usaram o gás zyklon-B para eliminar civis, principalmente judeus, nas tristemente célebres câmaras de gás em campos de extermínio.

Mas nem mesmo a democracia americana escapou da tentação de fazer uso desse tipo de arsenal. Durante a Guerra do Vietnã (1965-73), bombardeiros dos EUA despejaram sobre o território vietnamita toneladas de herbicidas como o Agente Laranja, um desfolhante que destruiu quase 10% da terra cultivável do Vietnã do Sul. E o governo americano também chegou a fazer testes com a própria população civil, como a liberação de mosquitos feita pelo Exército em áreas residenciais na Flórida e na Geórgia, em 1956, ou a liberação de uma bactéria inócua, prima do Bacillus anthracis, no metrô de Nova York em 1966.

“Não se sabe o que ocorre no Iraque”

Hélio Contreiras

O médico paulista Roque Monteleone, 55 anos, participou do Comitê da ONU que supervisionou a destruição de parte do arsenal de armas químicas e biológicas do Iraque até 1998.

ISTOÉ – O sr. constatou a existência de armas químicas e biológicas no Iraque?
Monteleone – Sim, estivemos lá para isso mesmo. Entre 1996 e 1997, tudo o que se encontrou foi destruído. A destruição foi, até mesmo, documentada.

ISTOÉ – Como a ONU investigou a desativação dessas armas?
Monteleone – O que a comissão da ONU fez no Iraque foi verificar a veracidade das declarações. E destruir. Isso até 1998, quando, por uma série de circunstâncias, inclusive a denúncia feita pelo Iraque de que os EUA estavam usando a comissão da ONU para infiltrar agentes, esta comissão foi substituída por outra, que nunca foi ao Iraque. A partir de então, não se sabe o que está acontecendo no Iraque, que alega que todo seu arsenal já foi totalmente destruído.

Muitos têm , poucos assumem

Hoje, poucos Estados admitem a posse de arsenais de armas químicas e biológicas. Segundo um estudo de E. J. Hogendoorn, da Human Rights Watch, em anos recentes, apenas Estados Unidos, Rússia, Iraque e Índia fizeram tal admissão. Os EUA, que começaram a destruir seu arsenal, têm ainda um estoque de cerca de 30 mil toneladas e a Rússia, 40 mil toneladas. O Iraque impede a ONU de verificar a destruição dessas armas e a Índia há poucos anos admitiu ter armas químicas para “propósitos defensivos”. Abaixo, os principais países que ainda possuem esse arsenal.

Egito Primeiro país do Oriente Médio a usar armas químicas – fosgênio e gás mostarda, contra o Iêmen, em meados dos anos 60. Tem pelo menos uma fábrica e continua a desenvolver pesquisas com agentes químicos.

Israel Seu programa de armas químicas ofensivas – operacional desde 1974 – foi desenvolvido em reação ao programa egípcio. Tem uma fábrica de testes de armas químicas no deserto de Negev.

Síria Começou a desenvolver armas químicas nos anos 70, em resposta à ameaça israelense. Tem um grande estoque delas, guardadas em pelo menos dois depósitos. As armas podem ser lançadas por aviões ou por mísseis Scud.

Irã Desenvolveu seu programa em resposta ao uso de armas químicas pelo Iraque. Possui peças de artilharia e bombas com agentes químicos e está desenvolvendo mísseis balísticos com a ajuda da China e Coréia do Norte.

Iraque Desde o fim da Guerra do Golfo (1991), a ONU destruiu mais de 480 mil litros de agentes químicos e 1,8 milhão de litros de percursores químicos. Acredita-se que o país ainda tenha um grande número de depósitos secretos.

Líbia Comprou agentes químicos do Irã e os usou contra o Chade em 1987. Iniciou sua própria produção em 1988 em Rabta. A instalação foi destruída por um incêndio em 1990 e acredita-se que o país esteja construindo uma segunda fábrica.

Arábia saudita O país tem uma capacidade limitada de armas químicas. Adquiriu 50 mísseis balísticos CSS-2 da China, pouco precisos e portanto aptos apenas para carregar ogivas químicas.

Coréia do Norte Os estoques deste país são os maiores da região e os norte-coreanos possuem um programa de armas químicas desde os anos 60. As armas podem ser lançadas por artilharia, lançadores de foguetes, morteiros e tanques.

Coréia do Sul Os EUA suspeitam que o país tenha armas químicas.

China Tem um avançado programa de armas químicas e pode lançá-las a partir de vários tipos de veículos, inclusive mísseis balísticos. Acredita-se que a China exporte armas e tecnologia para outros países.

Formosa O país desenvolveu um programa de armas químicas “defensivo e ofensivo” que estaria operacional desde 1989.

Índia Admitiu em 1997 que produziu e estocou munições químicas para “propósitos defensivos”. Muitas empresas indianas estão envolvidas na construção de fábricas em Estados que desenvolvem armas químicas.

Paquistão Pode produzir agentes químicos e munições com precursores químicos produzidos em outros países. O Paquistão estaria agora buscando a auto-suficiência.