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O repórter Raul Montenegro traz mais detalhes

Capacidade técnica e equilíbrio emocional. No domingo 24, o piloto Osmar Frattini teve de recorrer a essas habilidades para conduzir as manobras que salvaram a vida de todas as pessoas que estavam no voo dos apresentadores Luciano Huck e Angélica após o motor do avião engasgar entre as cidades de Miranda e Campo Grande (MS). Os momentos no bimotor Embraer 820C foram dramáticos. Frattini viu o avião perder altitude rapidamente e o nervosismo dos passageiros aumentar. Em meio a uma situação limite, ele evitou a tragédia e criou condições para o pouso forçado. O piloto precisou de calma e agilidade para encontrar um local seguro para a aterrissagem. Os passageiros – além dos apresentadores, seus três filhos, as babás Marcileia Garcia e Francisca Mesquita e o copiloto José Flávio de Sousa Zanatto – sairam praticamente ilesos, apenas com lesões leves, e o comandante passou a ser tratado como herói.

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A habilidade de profissionais como Frattini mascara um cenário preocupante. Aviões pequenos como o táxi aéreo em que viajava família Huck estão mais sujeitos a incidentes. De acordo com dados do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), órgão oficial ligado às Forças Armadas, 140 dos 145 acidentes ocorridos em 2014 no Brasil aconteceram com mono e bimotores com peso máximo de decolagem de até 5,7 mil quilos, faixa na qual se enquadra o Embraer 820C. Os motivos são variados. Mais da metade das aeronaves registradas no País são privadas, de instrução ou táxi aéreo – o que se reflete nos 76% dos acidentes envolvendo essas categorias entre 2004 e 2013. Além disso, os critérios de segurança desses aviões são menos exigentes do que os de aparelhos maiores.
Poderiam haver muito mais acidentes não fossem pilotos como Frattini. Mas ele está longe de ser o único herói à frente desses pequenos aviões. Durante um voo de Londrina (PR) com destino a Campo Grande, em junho de 2013, uma das hélices do bimotor do comandante Bruno Thomé, 29 anos, se desprendeu, causando uma intensa vibração na aeronave. “Fiquei na condição de monomotor, o avião começou a descer, o propulsor perdeu potência e algumas peças começaram a se soltar”, diz. “Foi um susto muito grande, se não tivesse desligado o motor do aparelho poderia ter se incendiado.” Em meio à tensão, o painel avisou que Thomé estava a 70 quilômetros do aeroporto de Presidente Venceslau (SP). Ele tentou normalizar o voo o mais rápido possível para pousar com segurança no local. “Tive medo de me machucar, causar um acidente e não chegar ao campo de pouso”, diz. O que ocorreu na aeronave Piper Twin Comanche foi uma falha de manutenção, uma rachadura que não foi identificada durante a revisão. Para o aviador, somente após uma emergência é possível saber se o profissional consegue controlar o estresse. “Na hora que identifiquei o problema, a adrenalina subiu e pensei que fôssemos morrer até o momento que consegui controlar o avião.”

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HABILIDADE
O piloto Osmar Frattini, 52 anos, que conduzia o avião da família Huck no
Mato Grosso do Sul: pouso forçado após obstáculos na pista

Aos 52 anos, Frattini é um comandante experiente. Quando uma luz acendeu no painel no domingo 24, apontando obstrução de combustível num dos motores, ele se alertou. Minutos depois, uma nova indicação mostrava problemas no outro propulsor. “Não tive muito tempo por causa da altura, havia risco de explosão e cairíamos como pedra no chão”, diz. Próximo ao solo, o comandante precisou desviar de mais obstáculos para concluir o pouso de barriga. Pilotos de aviões pequenos, no entanto, não costumam agir com tanta segurança. “É por ali que se começa a carreira”, afirma Shailon Ian, presidente da empresa de consultoria Vinci Aeronáutica. De acordo com Delci Pazzinato, diretora da escola de aviação Fly Company, é comum recém-formados enviarem currículos à empresa oferecendo trabalhar de graça como instrutores. “A pessoa que voa sem pagamento não consegue enxergar que talvez não sobreviva tempo o bastante para trabalhar numa empresa maior”, diz Ian.

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CHECK-UP
Huck e Angélica na segunda-feira 25, ao deixarem o Hospital Albert Einstein (SP):
ferimentos leves na bacia e na coluna

Em novembro passado, um aviador da Gol cancelou um voo de Belo Horizonte (MG) ao Rio de Janeiro (RJ) alegando fadiga extrema e jogando luz para outro problema enfrentado pela categoria. “Na queda dos Huck, o piloto estava descansado e tomou as decisões corretas. Mas nem sempre é assim, falta descanso”, afirma Benjamin Kotez, porta-voz da Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil. Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que pretende mudar esse cenário. De acordo com as regras atuais, um piloto pode trabalhar até seis madrugadas seguidas. “Depois da terceira, porém, o ser humano perde o reflexo para realizar operações com segurança”, diz Rodrigo Spader, secretário-geral do Sindicato Nacional dos Aeronautas.

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Em termos de estrutura, a aviação no interior de muitos estados é precária. Pistas de terra são a regra em grande parte do País. É justamente por isso que pequenas aeronaves são necessárias em grandes porções do território nacional. Os estados do Centro-Oeste, onde caiu o Embraer, ocupam a 12ª, 18ª e 21ª posições no ranking de populações, mas estão no top 10 dos acidentes. “Essa região se caracteriza por uma intensa atividade aero-agrícola em comparação com outras regiões do Brasil”, afirma o coronel aviador Marcelo Marques de Azevedo, vice-chefe do Cenipa. “Lá existe mais aviação privada e menos gente atendida pela aviação regular”, diz Ian.

 Os números do Cenipa permitem comparar o voo e o equipamento de Frattini com o de outras ocorrências semelhantes. A fase de cruzeiro onde ele estava, por exemplo, é a que mais registrou acidentes, com 22,5% (depois vêm decolagem e pouso) entre 2004 e 2013. A falha do motor, como aconteceu com o EMB-820C, também vem em primeiro lugar (21,8%). Em grande parte dos incidentes, nada acontece aos ocupantes (2.668 vítimas saíram ilesas). Lesões leves como a de Huck e Angélica somam 510 casos. Já as mortes foram 1.019 no período. Como mais aeronaves estão no céu, é natural que os números brutos subam.

Ocorrências envolvendo os trens de pouso também estão entre as que mais originam acidentes. O piloto mineiro Thiago Martins, 32 anos, precisou de desenvoltura e agilidade para aterrissar após o travamento de uma das rodas durante a decolagem de um Embraer Corisco em agosto passado. O voo deveria durar 15 minutos, mas se estendeu por uma hora. “Tentei recolher o trem de pouso, mas ele ficou travado, o que ocasionou uma pane elétrica”, diz. “Era noite, por volta das 21h, o painel apagou e não conseguíamos enxergar se o trem de pouso estava guardado ou não.” Sobrevoando o aeroporto de Uberlândia (MG), ele voou baixo e pediu para a equipe em solo identificar as condições das rodas. Martins conseguiu descer o trem de pouso apenas pela força da gravidade. “Fiz meu papel técnico e psicológico, os passageiros ficaram tranquilos, mas apreensivos”, diz.

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Dias depois de ficar nacionalmente conhecido como herói, Frattini foi afastado do cargo pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e está temporariamente desempregado. Sem data exata para voltar ao trabalho, afirmou que não possui um salário fixo e ganha apenas uma porcentagem sobre o valor pago pelo voo. “Temos um gasto grande para ser piloto e somos mal remunerados, é uma profissão sacrificante”, diz. Quanto ao acidente, peritos irão analisar se o avião estava com o combustível adulterado, problemas nas bombas ou na manutenção.

Fotos: Cleber Gellio/MIdiamax; Luciano Muta/Diário Digital; Douglas Pingituro/Brazil Photo Press