O ápice do catolicismo, a Eucaristia é o momento em que o religioso, com o cálice na mão, oferece o corpo e o sangue de Cristo aos fiéis em forma de hóstia e vinho para representar a morte e a ressurreição do filho de Deus. Foi nesse instante, enquanto segurava o cálice, que o arcebispo de San Salvador, Óscar Romero, foi assassinado por um atirador desconhecido, em 24 de março de 1980. A acusação junto à Organização dos Estados Americanos (OEA) é que o crime tenha sido cometido pelo esquadrão da morte do governo salvadorenho. À época, Romero pregava contra a desigualdade social do País. Enquanto a elite ligada ao Estado detinha o poder econômico e político, grande parcela da população estava mergulhada na miséria. O religioso chegou a sugerir que os ricos repartissem suas posses – só assim impediriam uma guerra civil. “Cedam os anéis antes que mãos sejam cortadas”, profetizava. Com seu discurso de justiça social, Romero se tornou um dos principais nomes da teologia da libertação, corrente da Igreja Católica criada nos anos 70 que interpretava o Evangelho à luz das questões sociais. Ao colocarem em xeque a validade de estruturas sociais lideradas pelos mais poderosos e, ao mesmo tempo, se distanciarem e questionarem a liturgia do Vaticano, teóricos e religiosos seguidores da doutrina, assim como Romero, foram perseguidos e silenciados, seja por governos ou pela própria Santa Sé.

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RECONCILIAÇÃO
Manifestação em favor da beatificação de Dom Oscar Romero (acima).
Processo, parado no Vaticano há 20 anos, foi retomado por Francisco (abaixo)

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Pouco mais de 35 anos após a morte do arcebispo, a Igreja, liderada pelo argentino Francisco, que nunca foi simpatizante da TL, mas tem construído pontes dentro e fora do catolicismo, faz o caminho contrário. No sábado 23, o salvadorenho será beatificado e se tornará o primeiro representante da Teologia da Libertação a alcançar tal título. A data marca a definitiva reaproximação do Vaticano com essa corrente. “Papa Francisco veio da América Latina, a região do mundo onde há mais desigualdade social. Trata-se de incorporar à missão da Igreja o que a teologia sempre preconizou”, afirma Frei Betto, uma das referências da teoria no Brasil.

Outro passo no mesmo sentido já foi dado anteriormente. No dia 12 de maio, o peruano Gustavo Gutiérrez, considerado o pai da teologia da libertação, participou de uma assembleia na Cúria, fato que alguns vaticanistas chamaram de “milagre de Francisco”. Gutiérrez foi um dos investigados na década de 1980 durante o papado de João Paulo II, quando Joseph Ratzinger era o temido presidente da Congregação para a Doutrina da Fé. Antes de se tornar o Papa Bento XVI, o alemão chegou a publicar um documento em que censurava a teologia de esquerda. Como explica o teólogo e professor da Pontificia Universidad Católica de Chile, Sergio Silva Gatica, a dificuldade de os europeus entenderem a realidade dos latino-americanos explica, em parte, a perseguição sofrida por essa corrente. “Um alemão como Ratzinger não acreditava na teologia porque não entendia sua necessidade”, afirma. “A corrente também era muito associada erroneamente ao marxismo.”

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Foi o próprio Francisco, em abril de 2013, o responsável pela retomada do processo de beatificação de Óscar Romero, que estava parado há 20 anos. Para acelerar o processo, o papa considerou o arcebispo um mártir que morreu por sua fé. Com isso, dispensou a exigência de um milagre, que seria necessário para ele se tornar um beato. Segundo o teólogo Fernando Altemeyer Junior, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), outros 248 nomes ligados à Teologia da Libertação devem entrar na lista de mártires. E um ícone da igreja progressista brasileira, Dom Helder Câmara, também teve seu processo de canonização autorizado neste mês. Num sinal de que o atual pontificado, ao trazer para perto a ala progressista, quer unir forças para resolver os inúmeros e graves problemas da Igreja Católica.

Fotos: FILIPPO MONTEFORTE/AFP; Evelson de Freitas/Folhapress; Alessandra Tarantino, HO – AP