João Carlos Teixeira Gomes é um intelectual baiano de fala empolgada. Gosta de contar histórias, passar em revista seus guardados. Membro da Academia de Letras da Bahia, o biógrafo de Glauber Rocha só muda o tom quando o assunto envolve o arbítrio pós-golpe de 1964 e um dos seus principais representantes, Antônio Carlos Magalhães. São exatamente esses dois temas que norteiam Memória das trevas – a essência perversa da opressão, que chega às livrarias neste fim de semana pela Geração Editorial (leia o encarte com os principais trechos da obra). Teixeira Gomes esteve no front de uma guerra travada por ACM contra o Jornal da Bahia, com a intenção de destruir o veículo. A luta de seis anos, que teve início em 1969, pós-AI-5, colocou o escritor no banco dos réus de um tribunal militar. No mesmo momento, nascia o estilo malvadeza de ACM, hoje conhecido em todo o País.

ISTOÉ – Como surgiu a idéia do livro?
João Carlos Teixeira Gomes – Escrevi Memória das trevas para alertar as consciências democráticas para o perigo de um político como Antônio Carlos Magalhães chegar ao poder absoluto. Ele foi criado e nutrido pela ditadura, velho perseguidor de desafetos, jornalistas e jornais. Se tal desastre ocorrer algum dia, teremos no Brasil um novo reinado de arbítrio e intimidações. Ele suprimiria todas as garantias individuais e agrediria a Constituição. É uma autêntica vocação tirânica.

ISTOÉ – Memória da trevas é o relato de uma resistência?
João Carlos – Canalizei para o livro a traumática experiência de quem enfrentou Antônio Carlos durante seis anos consecutivos, de 1969 a 1975, quando ele, então prefeito de Salvador e governador da Bahia – biônico em ambos os casos – tentou esmagar o Jornal da Bahia, do qual eu era redator-chefe, e me lançar na cadeia, usando a Lei de Segurança Nacional. Ele queria ser meu carrasco. Não conseguiu. Resisti até o fim e o derrotei.

ISTOÉ – O que mudou de lá para cá no estilo de ACM?
João Carlos – Trinta anos depois das perseguições contra o JBa, ele usa hoje os mesmos métodos para silenciar outro jornal, A Tarde, o mais influente da Bahia. Ele esmaga com bloqueio publicitário, numa perseguição insidiosa. Quando não se reza na cartilha dele, parte para a destruição.

ISTOÉ – Como ACM se tornou todo-poderoso na Bahia?
João Carlos – Ele nasceu depois do golpe de 1964. Antes disso, era um deputado absolutamente secundário. Não tinha expressão política até porque vivia dependendo do Antônio Balbino, do Juracy Magalhães e do Edgar dos Santos. Pós-golpe, consegue adesão de Castelo Branco e se transforma no preferido do militar para ser o prefeito de Salvador.

ISTOÉ – O sr. teve dificuldade de encontrar uma editora disposta a publicar o livro?
João Carlos – Terrivelmente. O Brasil está mergulhado num estado de pusilanimidade moral. Consultei grandes editores do País e eles mostravam medo, muito medo, de publicar Memória das trevas porque Antônio Carlos manda no Brasil. Agora, como manda nas editoras eu não posso imaginar. Espanta-me também ver a cobertura que lhe dão certos jornais e jornalistas do eixo Rio–São Paulo, cegos à sua trajetória truculenta ou pagando favores.

ISTOÉ – ACM não é o reflexo da política brasileira?
João Carlos – É difícil conceber um homem que persegue tão tenazmente jornalistas e a imprensa ter tão grande cobertura. Ele mandou, com timbre do Senado, uma carta para o chefe de ISTOÉ em Brasília (Tales Faria) para chamá-lo de filho da puta. Ele usa sistematicamente a intimidação e um grupo de jornalistas, bastante expressivo, dá cobertura e guarida a esse homem. A vocação autoritária do Antônio Carlos é tão espantosa e irrefreável que ele, um coronel do PFL, pensa poder coagir o PMDB a escolher o candidato que ele quer, no caso José Sarney, para presidir o Senado. Nunca se viu no País absurdo político igual.

ISTOÉ – O sr. acredita que ele ainda tem o mesmo poder?
João Carlos – Acredito que a sucessão na presidência do Senado está sendo bastante desgastante para ele. Afinal, trata-se de um cacique do PFL querendo ditar normas ao PMDB. É inacreditável que ainda tenha jornalista que trate uma posição dessa natureza com seriedade.

ISTOÉ – ACM não é para ser levado a sério?
João Carlos – A imprensa brasileira é servil, com pouquíssimas e raras exceções, aos interesses de Antônio Carlos. Ele iniciou sua carreira à base de troca de favores e conseguiu uma adesão espantosa. Antônio Carlos, no fundo, é um tiranete de aldeia. Ele construiu toda sua carreira intimidando jornalistas e desafetos. É um homem sem ética na política e ainda consegue respaldo como se tivesse condições morais de vetar alguém.

ISTOÉ – Como ACM se tornou um homem de comunicações?
João Carlos – Conto no livro que, diante da reação popular, fracassa, em 1976, a investida de Antônio Carlos, através de um testa-de-ferro, para a compra do JBa. Ele conseguiu, com esse mesmo grupo que se apropriaria do jornal, ajuda para comprar o Correio da Bahia. Começa, então, o domínio que passou a exercer na comunicação. Inicia-se a invasão ao mercado jornalístico da Bahia dentro de um projeto de controlar a opinião pública. O episódio da NEC foi fundamental para que ele conseguisse a programação da Globo, da maneira que todo mundo conhece no Brasil. Ele usou o cargo de ministro na época para favorecer uma empresa privada. Foi uma troca óbvia, um ato de corrupção.

ISTOÉ – No livro, o sr. diz que ACM gosta do lado malvadeza…
João Carlos – Gosta quando dizem que é violento, agressor, que persegue e não respeita. Ele tem um problema psicológico. Tem uma frustração machista juvenil e se sente gratificado quando caracterizado como valente. O grande telhado de vidro que ele teme ser apedrejado é o problema da corrupção, embora os fatos mais recentes, como ISTOÉ tem revelado, mostrem que Antônio Carlos tem uma vida pessoal muito questionável. São aplicações, como as denunciadas por Ciro Gomes, nas Ilhas Caymann. Seguem na mesma linha as vinculações com Ângelo Calmon de Sá e com o Banco Econômico.

ISTOÉ – O sr. está fazendo uma ampla pesquisa sobre tirania que vai virar um livro. ACM é sua inspiração?
João Carlos – Não. Mas a luta que tive pessoalmente com um homem cuja organização psicológica é a de um ditador me estimulou o desejo de entender melhor esse fenômeno. O porquê de um homem se arrogar o direito de dobrar a consciência de outros, de impor tiranicamente sua vontade sobre a sociedade. Creio que se trata de um processo de morbidez político-psicológica. Isso me estimulou o desejo de aprofundar meus estudos sobre a tirania.

ISTOÉ – Com a publicação do livro, o sr. não teme retaliação?
João Carlos – Há uma preocupação de familiares e amigos, como houve durante a luta no passado. Já recebi ameaça, já tive um carro destruído ao sair de um restaurante. Lutei, e luto, com muita consciência contra um tirano que queria destruir a liberdade de imprensa. Não era possível um tiranete destruir isso.