A chegada de um cargueiro português, no domingo 19, foi o último sinal de esperança para os pouco mais de 800 passageiros que estavam em um navio à deriva no Mar Mediterrâneo. Eles haviam partido de Trípoli, na Líbia, com o sonho de desembarcar, mesmo que ilegalmente, na costa italiana, e deixar as mazelas de seus países para trás. Ao avistar o cargueiro se aproximando para prestar socorro, os imigrantes se concentraram em um único lado do convés. Como era frágil, a embarcação adernou e acabou colidindo com o barco português. Jogadas ao mar, as vítimas eram, em sua maioria, emigrantes da Eritreia, antiga colônia italiana e dona de um dos regimes políticos mais repressivos do mundo. Ao lado deles, estavam passageiros, muitos deles trancados no porão, vindos da Síria, Somália, Serra Leoa, Mali, Senegal, Gâmbia, Costa do Marfim e Etiópia, inclusive 200 mulheres e dezenas de crianças entre 10 e 12 anos. Só 28 sobreviveram. O naufrágio é a maior tragédia recente do Mediterrâneo e suscita um debate incômodo: há solução para o drama de milhares de pessoas que, todos os anos, arriscam a vida em embarcações precárias rumo à Europa?

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À DERIVA
O navio superlotado levava mais de 800 pessoas, a maioria africanos,
da Líbia à Europa pelo Mediterrâneo. Entre as vítimas, havia
crianças de 10 a 12 anos. Só 28 sobreviveram

No desembarque em Catânia, na Sicília, dois supostos tripulantes, um tunisiano e um sírio, foram presos e um chefe contrabandista foi identificado. O premiê italiano Matteo Renzi classificou-os de “comerciantes de escravos do século 21.” Mas o efeito prático dessa investigação é mínimo perto da crise que o naufrágio representa. Para o primeiro-ministro de Malta, uma das principais portas de entrada desses imigrantes na Europa, não há outro nome para a tragédia: “É um genocídio.” No dia seguinte, outros três navios pediram socorro. Na semana anterior, 400 pessoas haviam morrido afogadas no naufrágio de outra embarcação.

Aos estrangeiros que se arriscam nas mãos de contrabandistas, essa é a única maneira de chegar ao continente europeu e escapar da violência, da repressão e da pobreza que sofrem nos países de origem. “Eles não têm direito a um visto regular e só podem pedir asilo quando estão em solo vizinho”, disse à ISTOÉ Ester Salis, especialista do Fórum Internacional e Europeu de Pesquisa sobre Imigração, de Turim, na Itália. “A Líbia era um receptor de imigrantes, muitos africanos iam para lá trabalhar na indústria do petróleo.” Com a desestabilização política, depois da Primavera Árabe, o Norte virou a única alternativa. Ao mesmo tempo, a Guerra Civil e o terrorismo avançaram na Síria e países como Líbano, Turquia e Jordânia aumentaram as restrições em suas fronteiras.

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Em reunião de emergência na quinta-feira 23, líderes europeus prometeram reforçar as operações de busca e resgate no Mediterrâneo. O tema é controverso desde que, em crise e sem a ajuda dos parceiros de bloco, o governo italiano abandonou o programa Mare Nostrum. A União Europeia implantou um substituto bem menos eficiente. Enquanto a Mare Nostrum dispunha de um orçamento mensal de 9 milhões de euros, cinco navios da Marinha italiana e 900 funcionários, a atual operação Triton custa um terço, utiliza sete navios da Guarda Costeira (bem menores que os militares) e emprega 65 pessoas. A operação italiana fora colocada em prática depois que 366 pessoas morreram num naufrágio em 3 de outubro de 2013, em Lampedusa, até então o mais fatal do Mediterrâneo. Até o fim do ano passado, quando foi encerrada, a Mare Nostrum resgatou mais de 150 mil estrangeiros – o que, para muitas pessoas, serve de incentivo para os contrabandistas. Segundo os críticos dessas operações, alguns traficantes simplesmente abandonam os barcos depois de determinado trecho da viagem, e os deixam à espera de algum resgate – ou da própria morte.

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Quanto mais se fecha o cerco, mais complexas e lucrativas se tornam as redes de contrabando. O valor pago por essas travessias varia de US$ 500 a US$ 5 mil, conforme o perfil do viajante. Em geral, o preço é mais alto para cidadãos do Oriente Médio, como os sírios, do que para os da África Subsariana, caso dos eritreios. É mais barato ir em janeiro, durante o inverno do hemisfério norte, do que ir em maio, quando o clima está mais ameno. O valor da passagem também depende das condições do barco e da inclusão de itens tão fundamentais quanto coletes salva-vidas, água e comida. “Os contrabandistas se aproveitam de todos os ângulos possíveis ao lucrar sobre a miséria humana”, afirma Kathleen Newland, co-fundadora e diretora do núcleo de proteção humanitária do Instituto de Política para Migração, de Washington, nos Estados Unidos. Nos cálculos da entidade, uma viagem pode render até US$ 1 milhão. O fato é que, apesar das restrições às operações de salvamento, o fluxo migratório só cresce, acompanhado do número de mortes. Nos primeiros meses de 2015, já são mais de 1,5 mil vítimas, o equivalente a metade de todo o ano de 2014.

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Quando têm a sorte de chegarem vivos em solo europeu, os imigrantes passam por um longo processo de regularização e sofrem com a marginalização da sociedade. Com o status de refugiados, eles têm certa liberdade para se mover entre os países europeus e acabam indo, sobretudo, para a Alemanha e países escandinavos onde possam trabalhar. Muitos preferem viver ilegalmente. O paradoxo é que, se quiser que sua economia continue crescendo, o continente precisa de mão-de-obra estrangeira. A razão está na demografia. Nas próximas décadas, a Europa vai envelhecer ainda mais e verá sua população encolher. As estimativas mostram que a população da Alemanha, por exemplo, perderá 10% de seu tamanho em 2050 e a maioria dos cidadãos estará acima dos 50 anos. Isso pressiona o sistema previdenciário, já que os trabalhadores terão que sustentar mais aposentados, e reduz o apetite da economia, acompanhando a queda da produção, do consumo e da renda. Esse argumento, contudo, é insuficiente para frear a popularização de partidos xenófobos, que ganham força com uma retórica cada vez mais dura contra a imigração. Enquanto o dilema não se resolve, milhares de pessoas continuam morrendo nas águas geladas do Mediterrâneo.

Fotos: Opielok Offshore Carriers; Francesco Pecoraro/AP Photo; Alessandro Bianchi/REUTERS; Carmelo Imbesi/AP Photo, Ismail Zitouny/REUTERS 


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