Pegue um conceito de pós-modernidade e misture com duas xícaras de abstrações filosóficas. Tempere com páginas de história da civilização e pitadas de física, química e, claro, arte. Reduza a palavra “não” e polvilhe com “sim”, a gosto. Separe em porções, muitas perguntas e processos. Sirva com criatividade e liberdade. Pronto. É assim que se alimenta o espírito e a imaginação dos comensais. Eles têm fome de beleza e de saber.

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No novo laboratório do chef catalão Ferran Adrià, que em 2011 fechou seu estrelado restaurante El Bulli, por tantas vezes o melhor do mundo, não há sequer uma panela. Não se vê chaleiras, caldeirões ou frigideiras. Tampouco fogões, fornos ou talheres. Há, sim, papéis, canetas e textos por todo lado.  Ali, a cozinha é uma consequência do pensamento e da inteligência.

Montado em Barcelona num espaço de 1.500 m2 , o El Bulli Lab poderia ser chamado de biblioteca ou de centro de estudos criativos. “A criatividade pode ser uma forma de vida, aplicada à qualquer atividade: da compreensão de um tomate à de um iPhone”, diz Adrià, usando seu crachá no laboratório apresentado pela primeira vez. “Como compreendermos um processo criativo, um processo de produção, um processo de experiência? Se conhecemos todos os processos, compreendemos um alimento, uma bebida ou uma tecnologia.” Entendeu? Gostou? Adrià sabe que é complexo. “Fazemos isso há 25 anos e poucos entendem”, diz.

Com Adrià trabalham 70 funcionários, que não são exatamente mestre-cucas. São filósofos, historiadores e sociólogos, cuja a palavra de ordem é: comer conhecimento para alimentar a alma. Depois de mergulhar profundamente no universo de seus novos utensílios de trabalho, Ferran Adrià achou que fazia sentido voltar aos fogões. E, mesmo assim, apenas por uma noite.

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Longe das panelas há quatro anos, o cozinheiro, como gosta de ser chamado, quebrou esse jejum no mesmo dia em que apresentou o seu El Bulli Lab. Estava feliz de uniforme branco, mangas arreçadas, protegido pelo avental azul marinho. Na noite de quinta-feira 17, na antiga fábrica de Palo Alto, em Poblenou, nos arredores de Barcelona, 40 convidados não disfarçaram o deslumbramento diante da inventiva cozinha molecular na experiência “This is not a dinner” (isso não é um jantar, em livre tradução). A celebração girava em torno do champanhe Dom Perignon vintage 2005, lançado naquela noite, pelas mãos do anfitrião Richard Geoffroy, chef de cave da marca.

Imerso na cozinha, Adrià só apareceu no final do show enogastronômico. “Parei para voltar”, resumiu Adrià, sorridente, a IstoÉ, único veículo brasileiro presente na grande noite do retorno de Adrià, que repercutiu pelo mundo em jornais como o The New York Times e o El País. “Parar de cozinhar foi um ciclo. Aos poucos, voltarei com as experiências no El Bulli Fundation. Mas esta noite não foi um jantar. Foi uma reflexão sobre espaço e liberdade.” O evento selou o contrato de três anos de Adrià e sua fundação El Bulli com a marca de champanhe Dom Pérignon. Juntamente com a equipe de Richard Geoffroy, Adrià e seus filósofos se debruçarão sobre a história do champanhe e suas safras, para explorar os mecanismos de seus processos criativos. No Dom Perignon lab, espaço dentro do El Bulli Lab, o objetivo será decodificar o passado para construir um futuro tão criativo para o vinho que nasceu de um sublime erro do monge beneditino que leva seu nome. Surpreendido por bolhas no vinho que preparava, o monge Dom Pérignon foi quem definiu, no século XVII, as regras básicas do champanhe moderno. Adrià ajudará a escrever um novo capítulo desta história? “Não sabemos onde chegaremos, mas queremos deixar um legado para as próximas gerações”, diz Geoffroy.

A marca é nova parceira da Fundação El Bulli, unindo forças ao investimento de 9 milhões de euros feito pela Telefonica e outros patrocinadores no projeto. Além do laboratório teórico, a fundação El Bulli terá sua unidade prática. O El Bulli 1846, que está sendo construído em Cala Montjoi, mesmo lugar do extinto restaurante, ficará pronto em 2016 e oferecerá 20 jantares por ano. Hoje o chef é consultor de marcas multinacionais, professor em Harvard e sócio do irmão Albert Adrià em quatro restaurantes em Barcelona. Em 28 de maio, Ferran Adrià vai inagurar ainda o “Heart Ibiza”, um restaurante-conceito na ilha espanhola, juntamente com o Cirque du Soleil. Ele não se vê como empreendedor nem professor. “Sou um cozinheiro, é uma ótima palavra.”

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No jantar que não era jantar, quem estava lá foi convidado a conhecer e potencializar o próprio paladar, como um dos cinco sentidos. Por essa regra, o preparo de cada prato só terminava depois da criação ingerida.  É muito mais do que alimentar o estômago ou matar a fome. Tudo que se come pode não somar 300 gramas, mas as texturas, os sabores e a originalidade alimentam o autoconhecimento. Um canapé de tomate com iogurte e esferas de azeite pode surpreender na boca com um sabor salgado de chocolate, como demonstrou, o Tomato and Olive oil airbag. Entre paredes que se moviam no escuro, jogos de luz e penumbra, mesas espelhadas, sons e névoas, os convidados experimentaram 29 snacks que interpretaram o vinho da noite.

 O roteiro sensorial do evento de três horas começou num salão escuro, onde os convidados foram orientados a se posicionar, de pé, em cada um dos 40 púlpitos enfileirados, onde uma garrafa de champanhe aberta e uma taça os esperavam. Nessa hora, espetáculo propunha que o convidado reconhecesse, de forma progressiva, a expansão do vinho a partir do momento em que garrafa era aberta. Antes do primeiro gole, uma cortina branca desceu, envolvendo os convidados individualmente, para que pudessem apreciar o champanhe. Depois, paredes se moveram, abrindo o espaço para um salão com quatro mesas com tampo de espelho. Não havia talheres, mas toalhas mornas e guardanapos.

Entre os destaques preparados por Ferran Adrià, brilharam clássicos do extinto restaurante El Bulli como as azeitonas esféricas (spherical Green olives), uma espécie de gelatina de creme de azeite com finíssima textura que ‘explode’ na boca, desmanchando sua cremosidade. Ginger, flowers and yogurt canapé (canapé com cinco tipo de flores e iogurte) e sorvete de parmesão também impressionaram. “O que quisemos mostrar foi liberdade”, resumiu Richard Geoffroy.

Já com uma taça de vinho na mão, Ferran Adrià, ainda de avental, alegrava-se. “Apresentamos uma maneira de captar os prazeres de beber champanhe com comida. Uma experiência diferente, não?”, disse ele, que agora só volta a cozinhar em 2016 quando o El Bulli 1846, que sediará a fundação El Bulli, ficar pronto. Enquanto isso, ele tira o avental para mergulhar novamente na metodologia que batizou de “Sapiens”, na qual, com a inquieta curiosidade de um cientista maluco ou de um gênio criativo, almeja compreender não só os processos da alimentação e da gastronomia, mas de qualquer área do saber. Fome de quê? “Tudo o que eu quero é aprender”, diz Adrià.

Fotos: Divulgação; Gisele Vitória